quarta-feira, 20 de julho de 2022

entregar, deixar isto que é o António

desde que fui para lá trabalhar que criámos uma espécie de amizade. a Rosinha é a costureira que tem um ateliê mesmo em frente, lá nas galerias, é mulher do empregado-escravo de confiança do meu patrão. ontem a Rosinha estava feliz, corte de cabelo novo, olho pintado de azul, quando nos cruzámos nas escadas. tenho uma coisa muito importante para lhe contar, Linda, chama-me Linda, sinto-me leve e fresca porque finalmente ganhei coragem e liguei à dona do ateliê a informar de que em final de agosto já não regresso, vou deixar isto, entregar tudo, cinquaenta anos a fazer o que não gosto é muito tempo e já falei com o António e com as minhas filhas, quero encostar, viver tranquila sem ter de as aturar, estas clientes - a Linda sabe - derretem-me os nervos e a paciência, humilham-me, então vou para casa fazer outras coisas, descansar. abracei-a e beijei-a e confortei-a e dei-lhe palavras de orgulho - orgulho porque a Rosinha sofre de depressão crónica e eu tenho ajudado um pouco, todos os dias lhe dou um sorriso e uma palavra de força e atenção, gosto muito dela, cedo percebi tratar-se de uma pessoa com um grande valor, excelente mesmo. então a Rosinha ontem estava feliz. talvez a próxima etapa seja a de conseguir deixar o marido, o marido como o ateliê que ela teve de aguentar durante cinquenta anos sem gostar, porque o marido da Rosinha desconhece-a, nada sabe dela, não lhe dá atenção, sequer consegue vê-la. talvez o próximo esgar de felicidade da Rosinha seja quando me disser Linda, tenho uma coisa para lhe contar, estou muito feliz, consegui dizer ao António que o vou entregar, deixar isto que é o António.


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