segunda-feira, 31 de outubro de 2022

continua

de tempos a tempos

há que tempo

a cair mansinha e tocada pelo vento

!ai! a chuva

como eu a compreendo

toca fininha

às vezes grossa  e desmedida

com a força do tormento

sabe desde pequenina

pequenina como quem diz há muito, muito, tempo

o que lhe quer mostrar o vento

sentiu e apaixonou-se

apaixonou-se porque sentiu

o vento ventoso que nunca viu

 e continua desfazer-se a chuva em água

em pezinhos de tule anda molhada

branca e cor de marfim

vermelha sangue de boi

e cor da rosa do éden jardim

azul,verde, alfazema, dourada

apontamentos mil

e amalerinha às pinguinhas

guardo-a no meu cantil



domingo, 30 de outubro de 2022

cá estou eu

chegou aflita, descobriu que o marido anda outra vez a mentir, para me mostrar a bolsa com a droga e o cachimbo e o canivete, pratas muitas e cartões em quadrados. pequenas doses de coisas com diferentes cores em saquinhos e uma pedra branca maior. não faço ideia, nem quero fazer, que drogas são. pediu-me que escondesse e assim fiz, só eu sei onde está a porcaria, não podia mandá-la embora ainda por cima com o meu sobrinho, é preciso protegê-lo. que tristeza. entretanto chegou o meu pai, muito feliz, voltou com a namorada, disto nunca há-de saber, é preciso protegê-lo, e não abriu a boca. quando vem triste, descarrega tudo, conta e pede conselhos. mas como está feliz, nada diz. é assim. cá estou eu.

quem me dera cansar-me para sempre. mas sei que amanhã acordo com o coração brilhante a estrear. outra vez.


 

que bom que é

as pessoas são estranhas. algumas pessoas são estranhíssimas. o meu pai é estranhíssimo. mas se ser estranhíssimo significa desamparar a loja e deixar-me sozinha de sábado para domingo, para estar com a ogre ogríssima, é deixá-lo na sua estranheza superlativa absoluta. assim posso fumar em todos os lugares que me apetecer e não ter cuidados com correntes de ar e nem com o volume da música. assim posso começar já a abrir as janelas todas para deixar o orvalho entrar e até posso onomatopoetizar o cão e o grilo, o canário e o besouro. que bom que é o meu pai ser estranhíssimo.



sábado, 29 de outubro de 2022

como não me preocupar com o futuro se é nele que vou viver o resto da minha vida?

eu acho que o céu zangou, zangou a sério, não costumo estremecer, mas esta noite ele ralhou tanto, e tão alto, e com tanta força, se calhar senti mais por conta de a janela aberta deixar mais entrar, o céu estava-se a rachar e a deixar escorrer a ira, !ai! que estaria a pensar, eu sei, era o eco da sua perfeita imperfeição de considerar, de se manifestar, que Putin quer fazer o mundo acabar. !ai! que aflição, céu, mas e se o mundo acaba sem eu o poder reijar?

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

essencial

acredito, porque sinto, que existe uma realidade paralela durante o sono, daí a sua magnânima importância. o sono, esse conjunto de horas em que morremos, !ai! que morte maravilhosa, é quando o nosso corpo tem a oportunidade de se equilibrar: a alma e o coração encontram-se e conversam e dançam uma valsa em par, talvez, ou duas ou três, chegam a acordo sem o ego, esse invejoso boicotador das vontades divinas que são o par. e depois quando acordamos, se ouvirmos o resultado dessa profusamente romântica fundição do par, sabemos sempre que como nos somos é como nos estamos. sabemos o essencial.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

boca de bebé

estou muito feliz, fiquei sem mais dois dentes lá do fundo, estou feliz porque são menos dois a arreliarem-me. durante a noite logo percebi que estavam a querer cair; começaram, de mansinho, a rabiar e depois a dor a espreitar e eu sem conseguir dormir. então hoje decidi quilhar em dose dupla o meu patrão mais recente. há uns meses tive de ir ficar sem outro dente, que estava por um fio, e ele teve a lata de deixar que me cobrassem cem euros. depois veio ter comigo e disse-me que era um serviço de muita qualidade e que se quisesse ser servida por ele, olho a piscar, o valor era quinhentos euros. ora eu sorri muito, estou ansiosa, pois claro que quero que seja o Dr. J. a mexer na minha boca, olhos dele a brilhar. adiante. a minha querida médica que sempre me tratou desde há sete anos, era empregada dele e deixou de ser há cerca de um ano, abriu uma clínica, e foi lá que eu fui hoje entregar-lhe o meu céu da boca, e fui em horário laboral mesmo sabendo que não trabalha com o meu seguro de saúde. ficou muito feliz por me ver e ainda paguei menos por dois dentes do que por um com o outro e com seguro. então eu hoje quilhei-o a dobrar. para festejar, meti uma dourada grelhada a ajudar-me a desfazer a anestesia e a temperar os pontos por sarar. agora já só penso na semana que vem para ir tapaar os meus buracos novos. estou mesmo feliz: já faltará pouco para ter boca de bebé outra vez.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

pode ser. se para alguém tudo for um estado de espírito, de espíritos à centena, sentir não é possível. nunca será. porque sentir é permanecer. e permanecer é querer.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

e a batuta firme

enquanto ouço as músicas bonitas de orquestra, vou fechando os olhos como quando me experimento em auto-estrada: conto até sete em linha recta, nunca consigo passar dos sete, aos oito abro os olhos, maravilhosa sensação do caos que se recompõe, descansa-me, como se o tempo parasse comigo em movimento, movimento a galope por dentro, !ai! que contradição calorenta, brisa depois, repetição, pimentinha rosa em mim, violino, violão, batidinhas de piano, harpa meiguinha, depois o maestro levanta os braços

e a batuta firme que sorri

já lambida

entra firmemente em mim.

domingo, 23 de outubro de 2022

estou conrigo

emociono-me com a facilidade da frescura de uma manhã mas só com o que e com quem, de facto me é emocionante. tempestade. então sorrio muito enquanto choro, enquanto escrevo a provar que escrever não é triste. por entre a confusão de sentir e de pensar que o que sinto pode não ser a verdade a não ser a minha verdade porque sinto, apenas sinto e acredito no que sinto. estremeço e transpiro, serenidade pungentemente inquieta, bebo as suas palavras como se fossem, e são, água. também as como e engulo e só depois as vou mastigando, quando já me são nutrientes que vagueiam, porque do meu corpo não saem e não vão sair, no meu sangue, na minha vitalidade, na minha alegria. e tamanha é a admiração, a minha admiração por si, por ri, que se o mundo acabasse hoje não haveria desejo maior se recomeçasse amanhã. mas como o mundo não acaba hoje, amanhã ele vai crescer e o meu peito vai inchar como um balão mágico até nunca rebentar. 

e quando quase me sinto só

não fico só.

e quando estou só

nunca estou só. estou conrigo.


sábado, 22 de outubro de 2022

como se eu fosse o princípio do fim

depois de ouvir dharmaland e nature boy por aí adormeci. e sonhei depois, acordei cansada de tanto querer, querer nos sonhos cansa por conta de ser dharma por dentro de dharma a acontecer. de olhos abertos sonhar não me cansa e se sonho com o ronito fico firme no meu querer e não arredo pé, arrecado os medos depois de lhes dar estalos nas caras, arrecado e não os mato, ando a aprender que os medos também servem para me defender, estou a mentir agora devagarinho e já explico: arrecado os medos e não os mato porque estes medos são bonzinhos e pequeninhos, nada em si me mete medo de os medos afogar. e depois, confesso, também não mato os medos deste medo porque fico com medo de o magoar. porque o que eu quero é passar o túnel dos medos com o medo ao colo, quero protegê-lo dos sustos do mundo, embalá-lo em mim e ouvir para sempre uma canção, dar-lhe banhinho que esquente até os medos mais casmurros que se levantam em contradição a boicotar tudo como se eu fosse o princípio do fim.

twist

elas acham normal. e se elas acham normal, pois claro que ele vai continuar a deixar as tampas da sanita escancaradas. uma coisa é o meu pai que já tem essa porcaria enraizada até aos tomates, agora um cromo com trinta anos é inadmissível, porco ignorante, porque também elas não fecham a tampa, por isso acham perfeitamente razoável. e como vou fazê-los entender que se não for, pelo menos, por uma questão de elegância - que seja por higiene. as retretes libertam gases e bactérias, por isso têm tampa. por essa razão é preciso fechá-las. os meus olhos arranham-se todos e a minha vontade é ficar sem vontade de usá-la. salvam-me as toalhitas de bebé para limpar tudo antes de usar. e é que depois ainda me chamam a atenção por deixar a retrete fechada, alegam nojo de abri-la. isto dá-me cabo dos nervos, obviamente. mandei vir uma roda twist com massagens aos pés, enquanto rodo a anca e a cintura, descalça em cima daquilo, também faço massagens aos pés. danço e massajo ao mesmo tempo. então sempre que vou à casa de banho, logo a seguir faço cinco minutos de twist lá na minha sala vazia deles, desses trastes.

é assim

 há dois dias que deixei de lhe atender o telefone, ignoro, ela só me liga para despejar o lixo. na semana passada, andava eu sem dormir em condições raladíssima com o lixo dela, percebi que nos dias seguintes em que não me ligou foi porque ficou tudo bem, tudo bem lá na maneira torta deles, que eu morra já aqui se algum dia vou dormir com um homem com quem não partilhe os meus pensamentos e sentires, então no fim de semana quando lhe perguntei cheiinha de preocupação e ela me disse que estava tudo bem percebi que nem foi capaz de me aliviar a carga, deixou-me com o lixo dela quando aliviada ficou. é assim. fiquei triste e triste e triste. e guardei. eu sou a garantia, a confiança, a segurança, do segredo a guardadora. tudo a troco de nada.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

não há maneira de eu ficar menos ansiosa quando chega a sexta-feira. fico a ver se há aquela novidade fresca e boa, rresca e roa, ando sempre a actualizar e a espreitar. às vezes sim e outras não, é a vida, raios partam a vida que não me dá a prenda que espero, que sempre esperei, como se fosse todos os dias natal. e por que é que não podia ser natal para mim todos os dias para eu preparar comidas deliciosas e fazer uma reza de amor antes de dormir em conchinha e depois acordar e ver a boa sorte e o raio do sol, do rol, andar a ver os sapatinhos durante o dia para ver beijos e beijinhos a toda a hora aqui e acolá? porquê que eu não posso contar tudinho naqueles olhos bonitos e depois ouvir coisas da voz com a voz por dentro e por fora da recta boquinha a dar-me a mão e o pé? hum? porquê? vou mas é fumar um farpalho como diz a outra linguaruda.

folhas de música

e ouvi a fulana dizer: vou fumar um farpalho, tenho a boca a saber a folhas de música e já me estou a peidar pela cona. foi o que ouvi. ri-me, nunca tinha ouvido estas expressões e muito menos enquanto estou a trabalhar. então decidi levantar-me e chegar-me a ela. não concordo nadinha com o que acabaste de dizer. desculpa lá, saiu-me, fui um bocado malcriada. não consigo entender por que razão o povo meteu as folhas de música no meio dessas outras para tu poderes meter também - disse-lhe eu. 

não percebeu, não importa, eu é que tinha de dizer.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

otrilaré, otroilará

quero lá eu saber que me gozem por eu até à exaustão me ser, à exaustão das gentes, não minha, porque eu não me tenho fim, que se riam e que pensem mil ET's em mim, que façam esgares atónitos, que comentem entre si, que encolham os ombros e abanem as cabeças, que se afastem ou que se recolham na sátira, que se vão foder e mamar uns aos outros, é assim e já está e estará ainda por nascer quem ache que assim não será. que se soltem as minhas ventanias de varrer tudo ao redor, ordeno, otrilaré, otroilará.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

dom sermão do risidon

apresentei-me toda lampeira, na segunda-feira, na primeira farmácia onde podia bem estacionar quase à porta, e perguntei quase a afirmar, posso levar o risidon sem receita?, apanhei com um grande sermão, ouvi como se não estivesse a ouvir, e respondi, se posso aqui, está bem, se não posso vou a outra, e aí o dom sermão teve de se calar e vender-me o amigo da diabetes. esta decisão de trocar o novo medicamento pelo anterior, sem ordem médica, foi minha, pois claro, cerca de dois meses com frequentes efeitos estranhos irritaram-me, sou tolerante, esperei a ver se passavam, e nesse dia acabou-se. entretanto ontem menti lá no emprego à directora clínica, que remédio, não referi a alteração e pedi receita para o risidon que tinha acabado. está resolvido e hoje vou outra vez ao dom sermão do risidon buscar o triplo a sorrir e acertar contas. o sermão dele valeu-me a certeza de que é um cocó, tanta letra por causa da proibição de vender sem receita. mas vendeu.

a tempestade chegou

o vento assobia nas árvores

como se estivesse zangado

e não está

e faz as cortinas dançar

ao mesmo tempo que a chuva canta

enquanto nos embala o sono

que rica definição de outono

domingo, 16 de outubro de 2022

adorei

hoje o Vasco faz anos, nove anos, e ainda há pouco era um meio quilo. é pela idade das crianças que consigo ter a noção exacta do tempo que passa e que fica. estava cá há um ano quando ele nasceu, tão frágil. e hoje fizemos-lhe uma festa com um insuflável gigante. e no meio de uma dúzia de meninos eu tenho a certeza que fui eu quem mais se divertiu, nunca tinha pinchado nem rebolado em um insufável. adorei.

verbo que se veste e despe

mas como é que se pode dizer que o amor é um acordo, nome, legenda plenamente entendível, se antes é, e que se unam o céu e o mar e a terra para me segurarem nisto que digo, ou venha um a um para me açoitar, desconfio que a corar os ponho a todos a andar, é um verbo, o verbo que se veste e despe de amarela e rosa e verde e vermelha e azul e branca e dourada e prateada e purpurinada véspera, acordar?

sábado, 15 de outubro de 2022

filtro e esqueço

as pessoas cansam-me, já disse, as pessoas com quem tenho de estar nos dias cansam-me, parecem carraças, são carraças. porque eu só tenho tempo amor e tempo para dar, elas sabem disso, odeiam-me por isso, motivo por que se grudam em mim. depois tenho de inventar para me desviar, começam a falar sem parar, e se estou em pé fico tonta de as ouvir, pensamentos, mil folhas escritas a fugir delas, sumam-se, é o que querem dizer, e se me sento a mim vêm ter, magnetismo do carago, cansam-me as gentes. e depois pensam-me esquisita, leio-as, dizem no que me fazem, contornos vestidos de esgares e palavras maldosas e oleosas que filtro e esqueço, não me comprometem, não me fritam, não me comprometo.!ai! de mim, cansada sem fim.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

mixórdia

tenho um estômago delicioso de audácia e o resto é treta, pelo cheiro consigo averiguar se os alimentos são frescos. e se insistir para tirar a teima pela boca o meu rico estômago começa a apitar, vês como o nariz tinha razão, argumento-me, e depois só pago a sopinha, pois claro, digo calmamente que não pago o que não comi por não estar em condições e ai de quem me contrariar. e depois o outro que chegou na segunda feira, hoje já disse que não iria mais - isto de manhã cedo - mas de tarde, quando cheguei, afinal parece que já quer ir outra vez. ora uma chefe que dá oportunidade a um ogre destes é pior do que ele. ademais, o tipo vestiu a mesma camisola preta três dias seguidos para não falar das tampas da retrete e do odor. e o que é certo é que de repente nasceu-me uma borbulha por dentro do nariz à custa do alimento estragado que provei por teimosa traição pela boca, que carago, eu nunca tenho borbulhas, é bem feito, digo-me, para aprenderes a não desafiar a inteligência nasal. e agora como posso tirar lapas?

admirável tristeza

talvez o que nos distinga mais uns dos outros seja mesmo o amor. porque há uma dezena de anos quando eu tive de vir para cá encontrei o quarto, o meu quarto, como se fosse um bueiro para eu dormir. propositadamente. como se eu bueiro fosse. e agora são eles, ela e ele, que estão no bueiro da vida. e eu sofro por eles, tenho insónia há muitos dias, ouço-a incansavelmente, ajudo no que posso, penso no Vasco que começa a coleccionar as memórias tristes e penso no meu pai que tenho de proteger para não saber. mas também penso, com admirável tristeza, no quanto o universo é justo e que nada deixa de dar ao milímetro - no que nada deixa por dar.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

todos os dias queria ter um sonho bonito

de contar às estrelas sobre ti

enquanto lhes penteio os fios brilhantes

preparando-os para os ovos estrelados

que cabem nos soRRRisos de mim

esse piquenique de água fresca na boca

terça-feira, 11 de outubro de 2022

limpinho e a cheirar bem

pediram-me delicadamente para trocar as quintas pelas quartas por uma questão de logística. está bem, a partir da próxima semana passa a ser a segunda e a quarta para que o novo colega se possa encaixar. espero que se encaixe e que tudo corra bem, penso, depois de sair da casa de banho, que tudo corra bem melhor do que neste espaço confinado de sanita toda ao léu com pingas de mijo e sem o ar perfumado. era o que me faltava agora levar com um fulano que não sabe usar a retrete nem o perfumador. terei de ignorar, pois claro, pode ser que a trabalhar não seja assim. mas eu queria uma casa de banho só para mim. assim como também queria poder fazer as descargas do mundo, ser a dona das descargas, ficava tudo limpinho e a cheirar bem num instante. e depois talvez me risse muito quando percebesse, toda vaidosa de ser, que era a dona da retrete cósmica brilhante.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

e eu não quero

 não me consigo concentrar, preciso de escrever. de contar. ora é de noite antes de dormir ora é de manhã ao acordar: despejam em cima de mim desgraças, coisas más, coisas que eu tento ajudar, e ajudo, mas depois por cima dessas vêm outras até à merda. no meio disso tudo ainda duvidam de mim, como se eu tivesse, e não tenho, obrigação de resolver tudo ao pai, à irmã, ao cunhado, ao sobrinho, à amiga. terei de arranjar uma maneira de me distanciar desta merda fedorenta que não é minha, nunca foi, nunca chateio ninguém. estou cansada.

estou cansada e vou arranjar uma maneira de dizer ao meu cérebro que tem de desligar, um dispositivo de segurança que faça disparar uma barreira de contenção da merda de fora para o meu dentro. tenho de treinar isso, terei de conseguir, isso danifica a minha rica alegria. e eu não quero, e eu não quero.

a sensualidade é íntima. a minha sensualidade é íntima e indisponível a plateias. esta é uma verdade imutável para sempre.

as pessoas são estranhas, cada vez percebo menos de tanto as perceber: estão tão habituadas a lidar com gente de merda que quando alguém merda não é nem sequer sabem distinguir. ou então, quando distinguem, ficam na dúvida se não é mesmo merda disfarçada. tudo se resume a merda onde permanecem a tratar quem não é merda como se merda fosse. mas quando lidavam com merda com certeza tratavavam a merda como um diamante, davam tudo, nadavam na merda. só posso concluir: à merda o que for da merda.

quem me quer magoar não me merece. talvez ninguém me mereça.

domingo, 9 de outubro de 2022

 !ai! de mim

que sou do amor fino

do padre

do padre como quem diz

(que não haja confusão

com esses fatelas do coração)

e digo

Vieira

sábado, 8 de outubro de 2022

fado ser

talvez possa parecer suspeita se disser, e digo, que adoro o traço dos seus desenhos. parecem traços de mãos de fado, fado masculino de fada é o que quero dizer. !ai! quem me dera ser desenhada pela mão do fado, conhecer os meus traços pelos seus olhos para me babar toda desde a manhã até ao aluacer. !ah! aluacer não existe, acabou de nascer. depois o galo que acorda mais ou menos aquando a mim, um dia vou dar-lhe um nome à maneira, talvez inventasse uma nova canção da alvorada. e o cão grande que mora em frente à minha varanda talvez ficasse com a voz ainda mais grave só para me dizer que o meu traço também pode ser - fado ser.

que me saiu do lombo e do coração

às vezes lembro-me da dona N. e lembro-me de ela já não se lembrar de mim. passaram alguns meses e agora sou eu quem não quer lá ir, é como se tivesse morrido. porque nas férias da sobrinha, eu adivinhei, estava à espera disso, mandou-me uma mensagem, está muito bem, já passaram alguns meses, como quem diz vou de férias e podias lá ir. mas não disse, não me disse que a pessoa mais importante dos últimos seis anos da vida dela podia ir visitá-la quando quisesse. queria usar-me para lhe tapar um buraco. e como eu só faço o que sinto que devo fazer sem interesses escondidos, entendo que não é agora, passados mais de quatro meses, que estou bem esquecidinha na sua memória, para isso serviu o corte de choque quando a internou e me inibiu de a ver, que vou para sofrer. agora que sofra ela, a sobrinha que não sofre, quem não ama não sofre, nunca sofreu, nunca fez amor à tia, agora sofre porque o seu sofrimento é ter de gastar tempo para picar o cartão da obrigação e da aparência de cuidadora presente.

de maneira que às vezes lembro-me da dona N. e do tanto que lhe dei que me saiu do lombo e do coração, do meu tempo e da minha atenção. e fico tranquila.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

 andei a pensar

no sofá

no magnetismo animal

que se a pele queimar

e já queima

bufa-se com beijos

e outras coisinhas 

passei o dia a cuidar do papá, estava na cama doente, hoje não sei ainda como está. mas sei que a minha vida não interessa a ninguém. sou completamente indesejável naquilo que faço, o que faço é invisível, particular, ninguém pode apreciar nem gabar, nunca será alvo de crítica nem de prémio. nunca desejará ver o desenho da minha calcinha nem as borboletas tímidas pousadas em meus seios, sequer terá vontade de imaginar o toque dos meus dedos ou o sabor da minha boca - quanto mais querer. 

a minha vida sou eu, por mais que seja confuso com tanta gente no meu pé, sou apenas eu. 

não se nota o azulão da bota, só ao sol. à chuva não vai poder andar.



quinta-feira, 6 de outubro de 2022

com bolachinhas de aveia, chá

é sempre assim, não sei como ainda me admiro, as férias são sempre para me cansar, vem um e pede isto, vem outro e precisa daquilo, só aflitos para tratar e cuidar e limpar, toxicidade que absorvo e que me vai para o sono, o meu rico soninho, depois ando arreliada, a cabeça parece que não desliga, e não desliga, sempre a trabalhar, sempre a bombar, não é justo, ando sempre a carregar com as coisas dos outros quando só queria beijos que me recebessem e embrulhassem de desejos com alegria no ar a tocar e depois os beijos levavam-me a passear nos montes com prados por dentro, apanhavamos pinhas e contavamos as estrelas cadentes por me apanhar. e depois brilhavamos juntos, eu e as estrelas, comiamos o farnel quentinho abraçados na mantinha rendilhada de lá e de cá. e bebiamos, com bolachinhas de aveia, chá. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

tanto cansaço até à meia noite

ontem o meu sobrinho que nasceu depois do rei fez anos. é filho do meu irmão e é lindo de viver, meiguíssimo e enérgico com os seus olhos pretos enormes e os seus caracóis sedosos e castanhos dourados. fez onze anos e por volta das 20:30h lá fomos fazer-lhe uma festa de beijos e outros presentes. fiquei a saber que adora ler Robert Muchamore, que anda na onda de vestir casacos à James Dean e que cada vez marca mais golos; a Eva, uma pequena diabrura encantadora, que também adora brilhantes e purpurinas, toda ela é cor-de-rosa e pediu-me que lhe pintasse um espelho em lilás e prateado no meio de tantos abraços. está bem, disse-lhe, enquanto apreciava a escova enorme que lhe ofereci por conta de ser igual à minha tal como ela pediu. também fiquei a saber, pelos meus olhos, que as pessoas que só vivem de frutas e legumes e doces ficam feias e secas e enrugadas tal e qual a mãe de um dos amigos do meu irmão, os desgostos também acentuam a imagem, pois claro. de maneira que por entre o sopro das velas e as conversas cruzadas, também vi um bebé que nasceu prematuro a parecer um leitão: tem nove meses e pesa doze quilos, metade do peso há-de estar na cabeça, que bebé estranho, pensava, é mesmo feio, não por ser um gigante mas pelos traços sisudos e vulgares. e depois também fiquei a saber que as meninas da isade da Eva, sete anos, querem porque querem uma colecção de Lols, desconhecia, as mais bonitas são morenas e com cabelos dourados, concluí, acrescenta-se-lhes os adereços que se quer e cada Lol, que vem em uma bolha surpresa, custa dezasseis euros. já não há barbies? as Lols são pequeninas versões, como se um desenho animado ganhasse corpo, de modernas raparigas e têm olhos enormes e apelam ao mundo estético. também descobri que existem bolachas salgadas em miniatura que sabem a pizza e estão à venda no Mercadona. tanto cansaço até à meia noite, vozes por todo o lado, só queria dormir ao volante, pensava bem acordada, e chegamos a casa em um instante.

lá no Rugar deve andar tudo a arder, pois claro, deve bastar o Ronito dizer alguma coisinha para começar o fungagá do piropo, a caça desalmada, há-de ser um consolo de faísca de pitos acesos em riste.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

sou teimosa com o amarelo


estas estavam arrumadas por não gostar da cor: castanho- excremento, que horror. são de tecido e a tinta amarela para aplicar em têxteis ficou verde azeitona. deviam alertar de que o amarelo só fica amarelo em tecidos brancos. digo eu. depois teimei no amarelo e espetei acrílico numa e deixei a outra. agora gosto delas assim, desiguais. mas como sou teimosa com o amarelo vou pintar a outra como gosto mais.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

não perdoo

gosto muito pouco que me façam de parva. o homem que veio substituir o cilindro deve ter achado que eu sou do entroncamento, talvez por me ver borrada de tinta e picho, descalça e a sorrir. esqueceu-se de deixar a mangueirinha, chamo assim, para as gotas que possam cair derivadas da pressão, estive a ler, hoje cairam, e meteu uma aberração com fita cola. quando fui a ver, !ui!, pois claro, deve ter as orelhas a arder com a minha voz. ah, e tal, essa é melhor, não quero, quero a do cilindro que pagamos e o mais rápido possível. fiquei triste, muito triste muito mais do que furiosa. porque quando o cilindro rebentou e eu ligei aleatoriamente para uma empresa do google, apareceu cá esse senhor com o filho, um miúdo que deveria estar a brincar em vez de trabalhar, brasileiros. e como apanhou a hora do almoço e eles ainda tinham mais dois serviços para fazer, preparei duas caixinhas com empadão, pão, fruta e até garfos e guardanapos lhes meti no saco para comerem na carrinha. e ele faz-me isto, faz-se - fazendo-me - de morcão. quis enganar-me, não tenho dúvidas. 

quando vier cá novamente na quarta vai desejar que o chão se abra para se enfiar. não perdoo.

os tacões é que me levam

ontem ao final da tarde fiz uma experiência: passei óleo sobre pele, óleo azulão em umas botas vaqueiro. agora estão a secar, ando sempre a espreitar, quero ver se pegou para depois lhes passar verniz das unhas que uso para pintar coisas, na espécie de cornucópias bonitas, roxo será talvez a cor do verniz que vou escolher, ainda não sei, só na hora tomo essa grande decisão, grande porque tem de condizer com o tacão, não é brincadeira, os tacões é que me levam pelos socalcos dos dias.

domingo, 2 de outubro de 2022

 tive um sonho pequenino

foi na sesta

estava prestes a morrer

depois acordei

com a preocupação

será que lhe marquei o roração?

puf

nervosa. estou um pouco nervosa mas consolada também. excedi-me mas não me arrependo e estou muito orgulhosa do meu pai: pediu-me que a bloqueasse, acabou, ouvi-a dizer ao meu pai, isto depois de dezonove anos, que é apenas um amigo, que só quer estar quando lhe apetecer, e em alta voz disse-lhe para a mandar à merda, manda-a à merda, foi o que eu disse, e ele mandou-a e desligou. e depois ela enviou uma mensagem a chamar-me princesa, que não quer falar com ele quando eu estiver à beira, pois claro, queria continuar a tratar o meu pai como um amiguinho moranguinho com açucar. e depois o meu pai pediu-me que a bloqueasse. e bloqueei. era o que faltava, o meu pai é um rei e eu sou a sua princesa e, por essa razão, a princesa não deixou que a sabidola o continue a tratar mal, a princesa quando se passa resolve tudo em um ápice. 

the end. o rei nada perdeu, a badalhoca desapareceu. puf.

nesta semana acontecem dois feriados a que acrescentei os restantes dias para ficar a descansar a minha beleza. e então fiz uma lista das transformações que decorrerão, tinta para texteis e ideias, em calcantes e outros adereços que me cobrem. e rabanadas também. lailailai

para eu não poder contar

andei a pensar e a ruminar no assunto, também fiz algumas pesquisas, já posso contar da sua, que agora também é minha, aflição. na quinta-feira, depois de tratar dos pendentes no exterior, liguei-lhe. às vezes tocam uns sininhos dentro de mim, confesso, e se tem dias que os ignoro por soarem ao de leve outros há que se o faço eles enfurecem-se comigo e tocam cada vez mais alto como se no alto de uma torre tocassem só para mim. nesse dia foi assim, não se calaram e liguei à minha A. onde estás?, pergunta-me imediatamente, anda ter comigo, estou a ir para o fim do mundo, voz trémula e a choramingar. fui a assapar pela arrábida, a outra ponte estava congestionada com um acidente, para a morada que me deu. cheguei e tive de ficar à porta a aguardar que saísse da junta médica virada para o mar da madalena, vento fresco, só eu é que lhe chamo fresco, os outros chamam-se briol, sol tímido por sorrir, e ensaio despreocupação na espera. eu acho que estou a perder a memória. tu sabes, o meu cancro na cabeça está bem, estável, mas não morreu, está cá e agora eu estou sempre a esquecer-me de tudo. abracei-a, contei-lhe umas coisas engraçadas para a descontrarir e depois fomos sentar as aflições para um banco improvável em madeia mesmo em cima da praia. pedi-lhe pormenores do que lhe acontece e do que diz o médico, inventei umas coisas que podem justificar as ausências na sua rotina, e acalmei-a para irmos almoçar coisinhas boas de que gosta muito e falarmos de outras coisas de há muito tempo para tentar perceber a sua memória de longa duração. mas agora estarei talvez com o coração um pouco mais apertado, aquele bicho que lhe está na cabeça, e que antes lhe afectava a decisão, está a acordar em outra frente depois da quimioterapia e da radioterapia, é muito inteligente. e eu só quero que esta minha amiga desde pequenina consiga sobreviver para viver e para eu não poder contar.

sábado, 1 de outubro de 2022


 

porque escolheu as rosas

ela passa por mim, quando estou a fazer pausa com cigarros, e fala-me como se me conhecesse de longa data. olá, como está, e descarrega os afazeres e lança perguntas atónitas para o ar a ver se corro a agarrar, percebo nadinha por que o faz, sorrio e penso com os meus brincos, é mais uma maluquinha, está bem. e ontem o segurança do edifício piroso onde eu trabalho, o Senhor Manuel, que também é maluquinho, mete-se com toda a gente que passa, talvez para engraçar o seu tempo que não lhe acha graça alguma, disse-me: ó doutora, Olinda, o meu nome é Olinda, ó doutora, de onde é que conhece a cem rosas? como diz? está a falar do quê? daquela fulana que estava a falar consigo, a cem rosas. não a conheço, a Senhora é que pára sempre que me vê e fala o que lhe apetece e depois segue. mas por que lhe chama cem rosas, é florista? está a brincar comigo, não sabe o que é ser cem rosas? não estou a brincar, o que é isso? olhe, é o nome que aparece no anúncio do jornal, cem rosas, mas também pelo que dizem não vale nadinha, não vale as cem rosas que lhe pagam. entretanto ri-me, pois claro, o que havia de fazer, e perguntei mas como é que o Senhor Manuel sabe disso tudo? ó doutora, os homens falam no café e os que lá vão comentam que os cem paus que lhe pagam são um desperdício, não faz nada de jeito. rio-me outra vez mas recolho a curiosidade de fazer mais perguntas sobre o não fazer alguma coisa de jeito. de maneira que fiquei a saber o mesmo além do pedacinho que fiquei a saber a mais: aprendi que existem pagamentos sexuais em código. mas e quê, tinha de ser rosas, não podiam escolher a expressão cem toros, pensei, quer dizer, e agora quando elavoltar a parar para me falar terei de me conter nisto de querer saber porque escolheu as rosas essa badalhoca das associações tristes que faz com as flores. 

arrebitadas papilas pupilas

o que eu andei à procura de um cacete para fazer rabanadas, as rabanadas são para fazer, e comer, quando apetece. mas há um pequeninho senão, pois claro, tenho de o fazer secar sem ser devagar, apressar-lhe o processo, quem manda no cacete sou eu, sou a patroa do cacete, envolvi-o em rodilhas com fugas na lateral a ver se o ar me ajuda a deixá-lo no ponto para o transformar em uma obra prima al meu dente e até já sinto a excitação das gustativas olindiscas: então, como é, menina, vais demorar muito? calem-se, segurem aí essa vontadinha bonita até o encontro acontecer - e isso será, arrebitadas papilas pupilas, quando - não eu- o cacete quiser.

a morte e a má sorte

hoje é já o futuro de ontem e daqui a uma hora é o futuro desta hora, pimba, pimba, é o tempo sempre a andar para a frente e a deixar ficar para trás tudo o que não se faz e não se diz e não se vive. porque a ideia de um futuro ao longe é asolutamente castradora de um presente perto, pertinho, de um presente que é e está presente. até porque existe a morte e a má sorte que têm a força suficiente para apoiar esta teoria - se deixarmos para amanhã o que podemos fazer hoje corremos o risco de não existirmos - nem existir - amanhã.