Em Terra Sonâmbula,
Mia Couto vai alternando duas narrativas, e é por isso que todos o
capítulos têm duas partes: na primeira ouvimos contar de Tuahir e Muidinga; e
na segunda ouvimos em alta voz um dos cadernos de Kindzu. Há, portanto,
neste romance, um texto com outro texto por dentro. Há uma espécie de magia
explorada entre as narrativas, palavra e terra ou terra e palavra como se
lavrar e tratar da terra para produzir fosse, e é, escrever. Maravilhoso Mia Couto.
Construção
do Romance
Mia Couto vai, palavra a palavra, ideia a ideia,
em metalinguística, construindo o seu - o nosso - romance, em intertexto de
oralidade, o autor serve-se, e tão bem, de tradições orais africanas mas também
daquilo que é narrar por cima da guerra. Há quem diga que Mia Couto não
escreveu um romance - mas antes uma sucessão de contos e provérbios tendo como
pano de fundo o horror da guerra.
O
que importa?
Não importa a forma, as origens, as inspirações - tampouco as
dores dos observados e a do observador. Importa, isso sim, na narrativa cheia
de narrativas de Em Terra Sonâmbula, a emoção das palavras e das imagens que Mia
Couto faz o favor
de nos ofertar. São imagens com cheiro e palavras que, cheirando, forçam-nos a
serem cheiradas. A atribuição de poderes à palavra pode bem ser entendida,
como referem Ana Mafalda Leite e Gilberto Matusse, como a encenação
das dimensões e das funções práticas características da palavra nas
tradições orais africanas.
Passagem
por Rousseau
Rousseau defende a tese de que
as línguas não têm como causa a necessidade, mas as paixões. A primeira
língua seria, sugere o filósofo, figurada, onomatopaica, vocal, em nada
diferente do canto. A evolução das línguas, que as reduz à submissão da
necessidade, faz com que se tornem monótonas e cheias de consoantes. A
escrita alfabética vem coroar este processo de racionalização das línguas. Neste raciocínio, a escrita coroa e
reforça o processo de afastamento das línguas da sua fonte original, o
coração. Logo, a escrita e suas instituições afectam, portanto,
negativamente as línguas. De um lado, definindo a civilização, temos a
academia, as línguas escritas, a razão; de outro lado, configurando o
estado natural, temos liberdade, canto, coração. Opõe-se racionalidade a
irracionalidade, atribuindo-se artificialidade àquela e autenticidade a
esta.
Oralidade,
pois
Não estará, então, explicada a preciosa oralidade que Mia Couto usa
e abusa para narrar a tradição africana? E o canto? Não será a música a mais
limpa forma de oralidade e de comunicação selvagem? A voz liga-se,
portanto, à fruição, enquanto que a escrita estará relacionada com
a racionalização. O texto escrito aparece como inevitavelmente destituído
da capacidade de abordar a "complexidade das forças do desejo",
sendo a enunciação oral "quase perfeita", pois culmina no canto.
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