domingo, 29 de janeiro de 2023

 estava difícil chorar, chorar, chorar. o universo esqueceu-se de mim, abandonou-me assim que nasci, não há outra explicação para uma vida tão pesada de carregar. porque dos outros ele não se esqueceu, aos outros deu-lhes gente como eu que se toca com tudo o que acontece ao redor. é a guerra sem fim e as queixas por todo o lado a arreliar-me, desabafos revoltados, é a minha amiga ucraniana que está desempredaga e sem subsídio e com refugiados para tratar,é a vizinha com três filhos que tem de sair da casa porque o senhorio quer realugar para ganhar o triplo, é a chefe que não cabe na inveja e recomeçou a atacar, é a miúda que não veste a roupa que lhe dei, dei porque se queixou, e nem bom dia me dá, é o sobrinho que só me liga porque precisa de dinheiro, é o cunhado que se continua a drogar enquanto se está a tratar, é a irmã ausente que só aparece para pedir dinheiro, o filho herdou-lhe a manha, é a amiga de cancro cerebral que agora - não sendo por mal - me pede comida para a visitar, sequer quer ter trabalho de cozinhar, é o pai absorto no futebol, é a irmã sempre a ligar para apoio no recomeçar, é a tendinite no braço direito que apareceu de tanto trabalhar e ao final da semana mal tenho força para mexer e nem sequer há vaga em lado algum para imediatamente a analisar com exames, é o mundo em ruído que me quer sugar, é uma multidão de vozes que não se afinam em uma só: é o universo que só me sabe mostrar que me abandonou, e abandonará, fiquei esquecida para sempre assim que nasci, ninguém quer a lavoura de me amar, ninguém sabe sequer da hora nem do esgar para me contar. estou sozinha, estás sozinha, moça, só podes chorar.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

 o meu sangue desceu durante o sono sem me avisar nestes dias embaciados que ainda me fazem ver melhor. devo ter sonhado com o ramor, não me lembro, mas devo ter sonhado porque assim que acordei lavada em vivo e abundante escarlate sorri. eu acho que ele é um espião, o melhor do mundo inteiro, qual 007, e ainda sorrio mais. os dias têm passado a voar com tantas arreliações, e se os dias se escolherem para se imporem como querem mediante as arreliações que cada um pode suportar?, penso, então está tudo muito bem explicadinho e eu sou a rainha, saia uma coroa bem brilhante, por favor, que adore champô de aveia, já que falo nisso adoro escrever champô, adoro este acento, pô. !ai! que riso

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

 nem penses, menina, nem penses passar mais uma noite e um dia sem verbalizares isso, foi que que acabei de pensar. às vezes fico desesperadamente triste depois de revoltada, a tristeza é o melhor remédio para a revolta, como estava a dizer, às vezes fico desesperada com esta coisa feroz que me assiste, feroz porque está em mim, de ser mãe do meu pai e dos meus irmãos e dos meus sobrinhos, tanta carga sua burra, anda, mas ser mãe não é só ser rodilha, menina, há a outra parte do abraço e do beijo e das palavras que se dizem e por isso ferozes na sua intensidade. pois, mas não há. e a carga que se carrega com gosto fica pesada e a cansar e a esgotar sem rebentar. vão todos à vidinha deles, tranquilos, e fico eu a carpir as suas dores e os seus horrores e a lavar a louça das comidas amorosas que lhes dou. é isso, estás na minha vez, diz-me a sorrir a minha mãe amiúde nos últimos dias, aparece e desaparece, estás na minha vez. e eu não queria a vez de alguém, a vez dela, só queria a minha - e a minha ninguém há-de pegar. depois fiz uma variante de empadão, pois claro, tinha de criar alguma coisinha para massajar a minha tristeza: meti a carne a picar com cebola, alho francês e do outro, salsinha fresca, pimentos vermelhos e amarelos e chouriça. depois refoguei com louro e azeite, meti-lhe piri piri e tomatate aos pedaços com caldo de galinha. preparei o puré bem consistente e deixei a carne apuradinha com abundante molho para lhe juntar queijo mozarela ralado até ficar uma espécie de papa aveludada e fôfa. e depois, em vez de cobrir a travessa som ovo batido meti-lhe maionese caseirinha acabadinha de fazer. o resultado, imaginei que assim ficaria e logo o percebi pelo cheiro, foi nadinha surpreendentemente: delicioso. que empadão maravilha. depois percebi que o meu pai gostou muito, não que me tenha dito aluma coisa, por conta de ter repetido a dose. é assim, o empadão maravilha que reinventei amou-me na sua travessa inteirinha.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

 um piropo pode transformar-se em assédio sexual quando, repetido e repudiado, passa a insistir. ontem fui assediada por um sapateiro e um sushi man. sem ter qualquer ligação, adoro sapatos e nunca porvei - nem tenciono provar, comer peixe cru manipulado pelas mãos mete-me nojo - sushi. adiante. como estava a dizer, um piropo é um inofensivo piropo. quando o piropo não é aprovado deve parar ali, tem de haver noção de que deve retirar-se e ir à sua vidinha. o piropo que continua quando me sinto incomodada e mostro-o passa imediatamente para outra categoria e acaba muito mal: o piropeiro ouve o que não estava à espera e ficará humilhado no seu propósito. entre o sapateiro e o outro o mais badalhoco foi, e será para sempre no que me diz respeito, o sapateiro, o sapateiro que ainda juntou aos seus apetites a velha cantiga do mas olha que sou casado. andar na rua cansa; andar na rua e ser assediada deixa-me de rastos. eles não sabem mas eu regressei à empresa com as mãos cheiinhas de sangue, estas mãos que tanto dão como tiram vidas, estas minhas mãos fazedoras de justas acções. bonitas e estilosas são as minhas acções, cabrões, é o que eu penso depois que passam a linha que só eu estabeleço. eles não sabem nem nunca vão saber. sabem apenas do que lhes dei: desaprovação, desprezo, nojo. e depois não tenho a quem contar, nunca tenho a quem contar quando preciso contar, as amigas estão ocupadas e o ramor parece que não existe, não se quer existir, na sua saga de real ficção. estou sozinha.

domingo, 8 de janeiro de 2023

mas eu gosto tanto do teu cabelo rebelde, ramor, mais comprido, com lulinhas de caracol, disse-lhe durante o cafoné, agora só tenmos de deixá-lo crescer outra vez para assim se manter por entre o sorriso enquanto fazes rolinhos sedutores nas barbas pardas. porque nos meus sonhos ele mantém-se sempre crescido.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

e agora que descobri o reitoso na rádio movimento, coisa fresquinha, já ando a ver e a ouvir tudo, lailailai, sabe tão bem apesar de ser poucochinho, lailailai

quando o dr. rosas que me vigia os olhos me disse que já preciso de outras lentes para ver ao perto, corri à óptica josé josé, !ai! que rica coincidência, a sorrir para fazer parelha, e escolhi uma armação em forma de borboleta. deixei-me levar pelas botas de verniz azul turquesa. no final do dia percebi que se o tempo passa a voar é, bem perto visto, tudo uma questão de deiscência visão caleidoscópica. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

 mas saiu um estudo sobre as batat, não quero saber de estudos foi o que me disse sem me deixar terminar, mas eu, interrompeu-me novamente, já lhe disse que comigo só tem de fazer o que lhe digo. quer dizer, este médico é um imbecil. corta-me a palavra como se eu fosse acéfala e um mero objecto do seu estudo, não me deixa expressar as minhas preocupações ao contrário - sim, ao contrário,  porque para eu chegar aos resultados que ele próprio disse estarem excelentes tenho de começar por mim indepenmdentemente do que ele diz, era o que faltava. então deixei-o aliviar os fígados, e isto tudo sobre o meu fígado, para voltar à carga: mas não quer saber do estudo, porquê? não lhe interessa ou ficou invejoso de também eu estudar os estudos que possivelmente estuda? riu-se e sossegou, agendou nova consulta para o final do ano e até me acompanhou à porta. depois saiu e passou à minha frente, bem sei o que ele fez, quis que eu o visse em pé e em movimento, quis fazer-se apreciado à força. o que ele não sabe é que só me apetecia dar-lhe um biqueiro e um safanão e que nunca nesta vida lhe conseguiria apreciar o corpo, aquele corpo desatraente aos meus olhos e ao meu cérebro, a começar pela forma como me corta a palavra. boi d'areia.