talvez por me ver com havaianas e picho desgrenhado, não sei bem, de manhã bem cedo o picho é o prolongamento de uma noite agitada de sonhos e soltos os cabelos fazem comichão aos sonhos, dirigiu-se a mim como fazem todos os que se baseiam nas aparências. ao longe parecia uma mulher muito bonita mas quando chegou bem perto assustei-me com os lábios de vermelho borrados, que tapavam uma boca disforme, e umas sobrancelhas desenhadas na perfeição, aterradoras, e em segundos imaginei quantos espirros não deve dar em cada pêlo que arranca. mas digo que talvez tenha baseado a sua aproximação na minha aparência demasiadamente descontraída porque disse assim
- não sabe utilizar a internet, pois não?
- mais ou menos... porquê?
- eu tenho aqui uma brochura, um papel com informação, para ir a um site, um local onde pode pesquisar coisas
- muito bem, não custa aprender
- não costuma pensar sobre as coisas da vida, pois não?
- não muito
- bem me parecia. e em Deus e nas doenças e na morte?
- também não
- então vai levar isto e ver vídeos e ler histórias
- muito obrigada
a mulher apresentava-se, ainda não eram sete da manhã, vestida de saia e casaco, cara borrada e cabelo arranjado. aquela mulher, pensei de imediato e reproduzo-o, estava a trabalhar. e é por isso que eu sou a testemunha de uma jeová - a testemunha de que estava perante uma empresária, alguém que procurou uma alternativa para ganhar dinheiro neste país esganado de pouca vergonha. aquela mulher anda a trabalhar ao serviço da religião. quanto ganhará para abordar pessoas na rua que lhe parecem ignorantes? talvez aquela mulher ande atenta demais às peripécias políticas do nosso Portugal. talvez se aconchegue demasiadamente aos debates que andam a passar. talvez.