segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

2050


a aproximação do novo ano traz uma sugestão para pôr na mesa do jantar: salmonas-touras. dizem eles, os americanos, que mais cedo ou mais tarde esta espécie verdadeiramente gourmet chegará aos pratos dos europeus. chegará o tempo, espero entretanto não ser viva, em que os humanos se alimentarão de pílulas identificadas por cores - azul logo de manhã ao pequeno almoço, vermelha ao almoço e ao jantar, e branca para as refeições intermédias. cada caixa equivalerá a uma estrela, que irá funcionar como um acumular de pontos, e quando as famílias alcançarem as cinquenta estrelas recebem um prémio: uma ida ao cinema para assistirem a uma sequência de curtas metragens sobre cozinhas, alimentos e essas coisas muito antigas.

domingo, 30 de dezembro de 2012

este ou outro

as rachadelas na pele dos dedos começam, finalmente, a cicatrizar. por vezes parece que até a pele perde a noção do tempo, nada de incomum, mas também do espaço: perder a noção do espaço, não dar pelos olhos e pelos ouvidos a ficar, é uma coisa como que do outro mundo, mas qual mundo, de um outro qualquer que não se conhece e que até poder ser mesmo este.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Dom Galo Cantão

mais minuto menos minuto o galo começa a cantarolar às seis, digo que é galo pela voz - as fêmeas são mais agudas nos sons que emitem mas, quer dizer, há sempre excepções -, e faço-lhe de imediato uma história: de crista bem desenhada cor de vermelho sangue de boi, apruma-se. de tal forma que, em redor, espalha penas castanhas que dão no olho a quem passa - esteve cá o Dom Galo Cantão, dizem, bem cedo, pela manhã. e ele, depois de o saber, faz também ele uma história quando pensa no que pensam: pois foi, pois foi, é uma grande pena as penas acabarem por voar e o Dom Galo Cantão também vai bem com o sol a querer montar a lua, não só com a aurora, não deveria ir embora.

sábado, 22 de dezembro de 2012

é mais ou menos isto

aquela coisa de comer rissóis com arroz ou massa faz-me comichão. se há quem agora coma muito disso, por conta da crise, outros já o faziam, fazem, e continuarão a fazer. é quase como usar o jornal, que é aperitivo de informação e reflexão, para limpar as pudendas.

que viva

há um mistério por onde o dezembro se embrulha. e não importa se não se é católico, se se é ladrão, se se caga na banheira ou se os sinos dobram: o Dezembro pica as pessoas e da picadela se faz mel. as gentes sorriem mais, distribuem abraços, pedem perdão com os olhos e incitam ao amar.chamam-lhe natal ao mensageiro da reconciliação - eu chamo-lhe cansaço de fim de ano, balanço dos músculos das birras e da maldade, escape, spa da inconstância. e não importa o que é, de onde vem, quem o faz e para onde vai. importa que nem que seja uma vez por ano as gentes páram, olham de frente, muitas até gastam o que não têm; por uma vez durante o ano as gentes dão prioridade aos que mais amam, aceitam em vez de julgar; pelo menos uma vez no ano jantam e conversam à mesa, esquecem os pneus furados da vida e bebem, no copo melhor da cristaleira, alegria tinta ou verde ou madura.

se o natal é isto, o natal só pode ser bom - um vírus altamente contagiante que se propaga à velocidade, não de um carro puxado a renas, de um tgv. mas talvez o natal não pegue em todos - há quem já nasça com o vírus e tenha com ele convivido toda a vida; há quem viva e deseje viver em natal todos os dias; há quem enfeite a mesa do jantar todos os dias, quem faça rabanadas e petiscos em dias que são apenas dias; há quem abrace estranhos porque vê tristeza nos seus olhos; há quem faça um poema a alguém só porque sim, porque esse alguém existe. há quem simplesmente viva para amar e partilhar e morrer e renascer e amar e partilhar até morrer de novo. há. 

de qualquer forma, se é no natal que as gentes amam, nem que seja por um segundo ou um minuto ou uma hora ou um dia ou uma semana ou um mês, que viva o natal. que viva o mistério por onde o Dezembro se embrulha.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

vi. ver. viver.




passamos e vemos o mundo, já não sei bem se vemos ou se é ele que nos vê a nós, umas vezes como se apresenta e outras, muitas mais e melhores, como queremos. naquele minuto em que o vemos como se mostra corremos o risco de morrer, quero dizer morrer mais amiúde, por tanta e tão grande ser a sua miséria. depois tiramos daqui para pôr acolá, pintamos no canto, esticamos a encorrilha, bordamos a dobrinha e escolhemos-lhe uma banda sonora que vamos buscar à reserva - adega que fica na cave da memória. e está feito, passamos por ele airosos: quase tanto como quando ele passa por nós sem nos olhar de frente e apenas indiferente.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

a fundo




quais pérgulas se vêem de longe
que não as do sentir que são perto?
truz-truz, bate na casca da amêndoa que é ainda flor,
de branco enroscada,
porém quente, a ferver,
ai como é estridente o eco em arrepio de lá!
devagar, devagarinho, pousada que está em pousio.
há cheiro de terra queimada, corropio, festa de querer molhar
 - o fundo é sempre bravio, sussurram os querereres,
não há quem nele se queira afundar.




terça-feira, 18 de dezembro de 2012

sinais porqueiros

quando os automóveis começam assim como que a tossir, no meio da estrada, quererão dizer-nos que estão doentes ou apenas a avisar-nos que a doença vem a caminho? curiosamente, nestas alturas, nem um stop nem um semáforo vermelho aparecem - só sabem ser inconvenientes na saúde, os porqueiros.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

não há título

querermos o que não é para nós, não porque sentimos que não é mas porque não depende de nós que seja, é triste. e nem sequer há título para disto.

domingo, 16 de dezembro de 2012

irresistível

a edição especial mentos bésame (duas das drageias são cor-de-rosa);


family guy.

a verdadeira Maria Sangrenta




o que teria feito a rainha da casa de tudor se descobrisse, na época, que trezentos padres andariam a abusar de mais de trezentas criancinhas? não tenho dúvidas que justiça seria feita: as criancinhas haveriam de ser punidas.


sábado, 15 de dezembro de 2012

o que é seu a seu dono

vinte e poucos anos, ucraniano, bem vestido e bem parecido. entrou na mercearia como se fosse um cliente e começou a pedir. ao fim de alguma insistência a senhora disse-lhe que todos os dias não podia ser e ele desatou a gozá-la. sangue a ferver, o meu, disse-lhe para ir embora e o gozo mudou de direcção. seguiu-me até casa em rol de piropos e insinuações e de suposto cliente passou a  exímio vendedor. força a porta da entrada sempre a sorrir desconhecendo a minha força. desejei, entretanto, que se fodesse todo - que uma gaivota lhe cagasse em cima e o cegasse ou que fosse atropelado por uma tempestade. maus pensamentos afastados, já em casa, vou ao terraço e ouço gemidos: lá estava ele, estendido no chão do condomínio, que quando molhado parece encerado, escarrapachado. não cegou de merda e não se encharcou até aos ossos - mas caiu. caiu como caem todos os que tentam passar por cima dos outros.  e ainda pensei em descer para ajudá-lo mas travei-me: o que é seu a seu dono.


zangados

zangados, ai qu'os deuses andam zangados!, fazem-na cair cheia de força e direcção em conluio com o vento. sim, porque a chuva também sabe ser doce e serena - isso é quando os deuses se despem todos e trocam águas, de fininho, sem precisarem de nos dar banhada da grossa.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

miséria onde não mora o amor

estás de vida falida mas já amaste uma figura pública? então estás à espera de quê para leiloares as cartas de amor?

são assim os tempos de cólera onde a miséria humana verdadeiramente se despe - ou se veste de oportunismo. aqueles que terão sido os mais bordados sentimentos, vertidos em pensamentos, de amor são violados e massacrados e humilhados. o contrário também existe: também há quem use o que sente, sem ter vivido o que sente, para escrever livros de amor e assim ganhar a vida - a sua. há quem venda livros, compilação de cartas de amor, e transforme o amor em almanaque e assim perca a vida - a dele, a do amor. 

e o amor, ai como é inteligente e sensível o amor!, nunca mais quererá alojar-se em quem se vende, em quem o vende. e é essa a sua justiça. 
porque o amor não pode ser vendido. 
porque o amor, ainda que em papel, não é de papelão ardido.

não

o que nasce primeiro: a confiança e a intuição de intimidade com quem partilhamos a dor e a alegria ou a satisfação e o alívio decorrentes dessa partilha? haverá partilha sem o interesse em quem sentimos que nos podemos entregar?

texto interessante com questão interessante

ontem fiquei a pensar em uma questão daqui e em como partilhar aqui, e em outros sítios, será controlar a doença pelo seu descontrolo. às tantas há um motor de controlo qualquer que desconheço - não percebo nadinha de html.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

foder vinte e cinco euros em um ginásio nem é caro

o kit da morte tem cereais, sabão, velas, fósforos e vodka. ficamos todos a perceber o quanto a morte aprecia energia, limpeza, luz, e descontração. bem visto a morte é, para os Russos, um ginásio de vida.

nestum com pensamento e mel

viver a não esperar nada é, não há paradoxo, esperar tudo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

teoria social crítica da razão indolente


como eu gosto do Boaventura de Sousa Santos.

abandono

rompe o dia, outono de malas feitas a beijar o inverno, a romper o dilema: é preciso continuar a acreditar nas pessoas mas também ter serenidade para aceitar o que não posso mudar. cheira a palavras por cumprir; cheira, de mansinho, a abandono.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

mais de estranheza

disseram-me para passar na junta de freguesia, a buscar o documento que pedi, às dezanove horas. perguntei logo assim: a junta foi privatizada? vi, apenas, olhares cruzados mas ninguém sorriu.

coisa estranha. mas simples.

diz-se por aí, o povo diz, não é só o poviléu, que os sogros e os cunhados são para toda a vida. ora isso não me faz qualquer sentido. os afectos da altura foram, por minha vontade e necessidade, desaparecendo assim como todas as ligações, ficando apenas a memória que quis conservar. assim sendo, como é que se pode enviar uma mensagem dizendo: o teu sogro morreu. o meu sogro? quem caralhos é o meu sogro, pergunto-me de imediato. depois vou à minha gaveta secreta e fico triste porque o senhor morreu, porque vai deixar de tratar da figueira de que tanto gostava - mas não por ter sido meu sogro. é simples, afinal.

pequeno sol





banco de tela achado
pequeno canto
águas em olhos de anzol
rasto d'encanto ao desencanto
cuecas de nevoeiro, ainda, no meu pequeno sol


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

TPM, princesa, enfermeira, e probabilidade

há uma probabilidade bastante forte, tão forte como outra qualquer, de toda a série de episódios do internamento da princesa ter sido desencadeada por transtorno pré-menstrual (TPM):

1º episódio: com mais tensão e fragilidade do que o habitual, em fase de TPM, Kate, durante um evento social, terá dito a William que se esquecera de tomar a pílula várias vezes nesse mês ao que ele respondeu: está tudo bem, querida, os esquecimentos também podem ser filhos de Gales;

2º episódio: volvidas algumas semanas, Kate não consegue tomar o seu suco de laranja natural pela manhã e queixa-se, em lágrimas, ao marido que de imediato a transporta ao hospital questionando-a no percurso: querida, não está para te descer o sangue? deverá ser isso mas isso merece um exame, tu não és uma qualquer, tu és a minha princesa;

3º episódio: em altura de TPM, dia de transtorno positivo, sim porque o TPM é inteiro, uma jornalista australiana decide convencer o seu colega a ligarem para o hospital e reinarem com quem lhes atendesse - objectivo cumprido enchem o papo, e o mundo, de riso;

4º episódio: embuste descortinado e a enfermeira, que atendeu o telefone e passou a chamada à sua colega para solidariamente informarem a família real do estado do sumo que ficara no copo do pequeno almoço da princesa, aparece morta - suportamente morta pelos ecos do riso.

cenas do próximo episódio: terá sido o TPM a matá-la, uma espécie de eutanásia (um estou morta por te matar) entre si e si?

(não perca. mas também não morra, entretanto, de curiosidade)

domingo, 9 de dezembro de 2012

semiótica



o eco é uma reacção ao som perante o vazio. ou então, não: o eco é, simplesmente, a depuração do som ou da imagem ou da palavra ou do gesto.

não restam margens para dúvidas é naquele ponto de o Eco ser Umberto.

sábado, 8 de dezembro de 2012

que rica filha da vida

aflição, tanta dela, pior do que aquela quando se perde a carteira com os documentos sociais todos - porque esses podem não se conseguir recuperar mas renovam-se, quando venho para escrever aqui, entretanto confesso que já se foi de fininho como o vento de outono, e não vejo as definições de administrador para poder escrever. acudam! acudam! que desgraça!, gritei em silêncio que até as membranas sonoras ficaram moucas, dedos em agitação, olhos a procurarem soluções, desatino. depois decidi tomar um banho, a água ajuda a lavar os pensamentos, e já cá estou. estou habituada a virar os imprevistos do avesso, a procurar soluções, a arranjar alternativas, que é como quem diz: sou uma boa filha da...da vida, pois claro.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Valquírias



terá sido amor à primeira vista, aquela coisa do só quero esta e mais nenhuma, que sentimos pelos olhos. o abraço, tão fágil e tão forte, selou aquilo que viria a ser uma das ligações mais importantes da minha vida. ela é especial por ser ela mas cada vez mais me convenço que terão, ela e mais uns quantos a si semelhantes, um mistério-delícia - uma espécie de personalidade e de carácter que as faz maravilhosas, inigualáveis, insubstituíveis.

Miguel Ângelo, no século dezasseis, enquanto pintava a capela Sistina, tinha como companhia uma spitz que presumo querer que se tivesse chamado Donna; Mozart, dedicou uma ária à sua spitz Pimperl no século dezoito; Chopin, no século dezanove, não resistiu aos encantos da sua, vou chamar-lhe assim, Dame dedicando-lhe a Valse des Petits Chiens.

todos os dias eu dedico, e devo-lhe, boa parte do meu tempo e da minha alegria. a Valquíria carrega nos olhos a vida; elas, a Valquíria, a Donna, a Pimperl, a Dame, são forças de vida. até à morte.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

vivertariado precisa-se



fazer voluntariado está na moda - está na moda ser parte activa de uma causa, de preferência de uma que seja notícia e que engrandeça quem nela participa o que é, per si, uma contradição com o altruísmo que é, que só pode ser, o voluntariado. ser voluntário, na vida, é muito mais do que contribuir para bancos alimentares ou juntar e distribuir cobertores e meias pelos sem abrigo - ser voluntário é dar de nós, atendendo às necessidades dos outros, não quando apenas podemos, quando sentimos que de nós precisam. ser voluntário é mais coisa intuitiva do dias do que demanda vestida a rigor nos nossos dias.
somos voluntários quando afagamos um cão abandonado mesmo antes de lhe darmos comida; 
somos voluntários quando ouvimos a nossa vizinha que não tem com quem falar; 
somos voluntários quando cuidamos dos filhos de uma amiga; 
somos voluntários quando ensinamos alguém a escrever melhor - não pelo prazer que sentimos em ensinar mas antes pelo prazer de vermos nos olhos o brilho de aprender; 
somos voluntários quando nos inibimos de ir a uma festa para fazermos companhia a alguém que está triste; somos voluntários quando decidimos partilhar as compras do mês com aquela pessoa que está sem trabalho; 
somos voluntários quando damos aquela força, desenhada a abraço ou palavra, a quem dela precisa; 
somos voluntários quando, simplesmente, fazemos da vida, da nossa, um punhado de versos que embelezam outras vidas.

e é no meio do viver, do viver alheio às crises económicas e políticas, onde o ser e os seres se misturam, do viver que é sempre mancebo da vida, que dar é ser. que dar é ser voluntário.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

há mais medo do que frio

e então, não há cachet para o homem?

breve, brevíssimo, ensaio sobre a cegueira



tamanha foi a vontade de devorar o par de donuts, nunca tinha comido donuts por razão alguma em especial - só mesmo por falta de curiosidade e vontade, mesmo ali, entre a estação de serviço e o carro, que, gula em cegueira, usei a chave do carro para abrir desalmadamente as embalagens. no fim, quase em sintonia com o arroto de consolação, percebi que há abertura fácil. mesmo fácil. e riso também.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

não. não te amo, Porto.

há cidades por onde a luz, ao passar, se deitou. cidades onde não moram dias escuros que arranham a barriga do céu.
há cidades de horizonte, verde à vista, onde a marca do homem não cheira a vã conquista.
há cidades onde o riso das gentes é feliz, breve serenar dos passos da semana, e a compasso.
há cidades onde as viúvas enrugadas cortam o picho e se reunem no doce falar.
há cidades onde os olhos, em tanto espaço, fazem pausas a descansar.
há cidades onde se mistura o urbano com o rural e onde o jumento é portento.
há cidades onde o lixo não dói e as flores são enfeites.
há cidades assim, sim, mas o Porto não é uma delas.

domingo, 2 de dezembro de 2012

a espinha de peixe vai para os Portugueses



política
(grego politiká, assuntos públicos, ciência política)






hoje é domingo e decidi, não ir à missa, ir ao dicionário. 
com algumas definições objectivas e claras podia estar tudo dito. mas não está: o que falta à política em geral, e à portuguesa em particular, é precisamente o prefixo bio - as três letrinhas que exprimem a noção de vida, do viver; que exprimem as costuras dos fundos, dos fundamentos das pessoas e dos bichos e das coisas. falta a consciência de que são as pessoas que dignificam a Cidade e não o contrário; falta o respeito pelo semelhante e igualmente pelo oposto; falta, na Assembleia da República, um punhado de versos nos discursos que arrebatem - e contrariem - o monte de estatísticas e de gráficos de espinha de peixe que mais não são do que isso mesmo - um peixe desnudado até à espinha que nem os gatos querem. 


façam biopolítica, senhores!, apretrechados de bioética!, num estado que é suposto ser de biodireito!


sábado, 1 de dezembro de 2012

Cinquenta anos seria pouco, Renato.

há coisa que nunca me passaria pela cabeça ser: juíz. andar ali a acompanhar as manobras e os contornos à lei das defesas e das acusações; amar cegamente a lei porém sabendo muitas vezes que vai contra os valores e o carácter; decidir o caminho de gentes. mas já que existe o poder, esse poder, para manutenção da ordem da Cidade, custa-me perceber onde está a dúvida perante alguém que matou a mesma pessoa várias vezes depois de andar a tirar proveito e a prostituir-se movido a fama e a dinheiro. custa-me perceber que a insanidade mental possa constituír argumento de não-culpa. parece-me óbvio que alguém que finge estar em poesia apenas para se cobrir de sucesso mostra já indícios de insanidade mental - assim como é obviamente irrefutável que ele matou e esquartejou e voltou, humilhando a própria humilhação, a matar e a esquartejar o mesmo homem. como é que perante provas e evidências e confissão existe a dúvida de condenar quando condenar significa exactamente isto: vais, não pagar pelo que fizeste porque o senhor nunca mais vai poder, sequer, ver o sol, ser castigado a teres uma vida bastante limitada ao ponto de, pelo menos, te debateres com a tua consciência e deixares que ela te consuma alguns anos - sempre poucos - da tua vida.

porque o amor nada tem que ver com injustiça. e a mãe do Renato, estou certa, sabe disso.