as máquinas de senhas para aguardar a vez são uma invenção justa, custa-me dizer, custa-me porque poderiam bem ser desnecessárias se as gentes soubessem o seu lugar e respeitar o lugar do outro, se bem que não me agrada reduzirem-me a um número que quando lhe chega a vez ou vai em forma de barco ou vai quase desfeito prestes a ser pasta de suor com dedos. mas se é justa também não consegue ainda passar à frente das gentes que tiram duas ou três e optam pelo balcão que estiver livre primeiro - e lá se vai o respeito pelo seu lugar e pelo lugar do outro - não havendo espaço para reclamar ou, pelo menos, para reclamar como eu gosto com o único argumento possível: eu estou à sua frente e mantenha-se, por favor, atrás de mim porque cheguei antes. não há outro argumento e a máquina justa, perante as gentes injustas, abstem-se de culpa. depois há aquele tipo de homem com coragem de mosca que confrontando-se, igualmente, com a injustiça das gentes perante as gentes sob a justiça da máquina aproxima-se isoladamente de alguém, talvez de alguém que lhe pareça corajoso, e começa em bzbzbz a injectar o veneno da reclamação para não ser ele a fazê-la mas sim a suposta merda onde veio pousar. não se entranhando o veneno num, passa para outro - e assim vai rodando até chegar a sua vez pela justiça da máquina. quando isto acontece, nem uma palavra lhe sai ao balcão, nem um suspiro de impaciência, nem um esgar de reprovação; quando isto acontece, ele é o homem mais sereno e paciente do mundo e, voltando-se, quando sai, é para mim - a que só sorriu à mosca por não ser merda nem por querer aproveitar-lhe o veneno - que vai o suspiro de hálito impaciente e o esgar com cheiro de censura; quando sai, é o leão mais corajoso do mundo perante uma máquina justa que é ultrapassada pela injustiça das gentes; quando sai, leva com ele a certeza que quando se deitar será comigo que vai sonhar - vai sonhar com a única pessoa que lhe permitiu ter, talvez, uma erecção de coragem. chamemos-lhe o homem de coragem-mosca.
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