quando Amélie Poulain se desfaz em água ou quando a mula se atravessa na linha de comboio para se suicidar. não há imagem melhor para uma emoção arrebatadora do que a de alguém (des)feita em água. nem para um desgosto de amor que é sentido como um comboio a trucidar-nos. a vida não é, não pode ser, pedigree cem por cento real - o que a vida tem de mais fantástico é, precisamente, a fantasia. é o véu transparente que cobre, descobrindo, toda a realidade. a fantasia é a poesia e o romance da vida, local absolutamente inseguro, o do embelezamento, para se viver em absoluta segurança. mas o mundo está cheio de gente com pedigree cem por cento real: um olhar não tem narrativa - um olhar é apenas a função vital dos olhos; uma carta é aquilo que se escreve para reclamar às finanças - não existem cartas de amor; a intimidade não é uma história de encantar - é uma sequência de fodas; um bife com batatas nunca é um momento de apreciação balsâmica - um bife é uma fatia da vaca que foi esquartejada no caralho do matadouro e as batatas são mero acessório transformado em óleo a ferver.
conviver com gente de pedigree cem por cento real teve sempre de ser desde que nasci, aguça-me a paciência e o engenho para a poesia e o romance, mas só porque no final - ou no começo, é quando calha - há sempre o oásis de recolha, o escape, a casa, a minha casa, onde posso descartar-me dos cheiros e das crostas que a convivência com eles me deixa na alma. mas e se deixar de ter a minha casa? como vou sobreviver no mundo do pedigree cem por cento real que não se coaduna comigo, eu que sou traçada, raça de prosa e poesia, de realidade com fantasia?