quarta-feira, 22 de junho de 2022

é muito simples

sou literária a pensar e a contar sem, no entanto, transformar. o que é o que é, não faço literatura. é muito simples, sou só eu.

terça-feira, 21 de junho de 2022

realmente como se fosse real

 bastou perceber que teria de se esforçar muito para a meter num lar imediatamente, nem tempo tive de me despedir e de lhe deixar uma brisa no rosto, sim, porque marcada de mim já ela estará para sempre. como as coisas são rápidas e simples quando são um peso pesado para alguns, penso, enquanto acelero na estrada para chegar onde já não tenho vontade de chegar. a noite foi dura: houve foguetes, aquele artifício nojento que os cães e que eu odeio, a acordarem-me com susto, o sangue que não pára de jorrar e a saudade do que nunca mexi. anda, dorme, adormece, amanhã é outro dia novo a estrear, viro para um lado, viro para outro, levanto-me, passo a pomada uma e outra vez, parece a assadura dos bebés que não passa e arde muito, desconforto, persianas que fecham mas não se apagam, cérebro a mil, carros que passam sem pantufinhas de lã, deve estar a chover porque os pneus caem nas poças, senão não ouvia o grosso chapinhar, gatos vadios, ou com o cio, parecem crianças a chorar, essa é uma razão porque não lhes aprecio a companhia, depois uma campainha a tocar ininterruptamente, mas o que é isto, o mundo inteiro a azucrinar-me o sono, o riso e o amor, vou fazer queixa ao kundera depois de contar tudo ao do meu derriço, conchinha não há, calam-se os cabrões dos gatos finalmente, ou as poças secaram ou os carros deixaram de passar, o meu sangue continua a correr e talvez a pimenta no rabo seja agora açúcar. adormeci, sono que se esticou como um elástico, se calhar foi o que está a aguardar a saia, !ah!, e acordei realmente em beijo de derriço como se fosse real, abraço a almofada e deixo-me escorregar até à banheira para me levantar. bom dia, Olinda, chegou ao seu destino: tem meia hora para entrar na realidade fantástica e travar a batalha de alljubasrotas do dia. até já.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

poesia

às vezes canso-me. às vezes penso: hoje não vou fazer do dia poesia e fico a observar e canso-me também. porque se eu não fizer do dia poesia, alguma coisa tem de ser poesia, o dia não é dia. fica uma página em branco, sem nada a registar. porque o mundo está cheio de gente descontente que nada tem para acrescentar, faz-me confusão, gente que vive por fora. aquela também estava a querer esticar a corda comigo, não sei bem por que razão as pessoas pensam que podem esticar a corda, deveriam pensar ao contrário: então se é paciente e tolerante e perseverante, mais uma razão para considerar e respeitar em triplo. mas não, fazem ao contrário, ela estava a querer que hoje fosse eu a lá ir cuidar da tia antes de ir trabalhar. então esticou a corda. tenho reparado que usa as mesmas calças desde segunda-feira e o tempo que lá tem estado, deve andar com medo que alguém faça queixa dela por não cuidar da velhinha doente, em vez de limpar e arejar a casa, de lavar e aprumar a tia, fica no telemóvel só a fazer corpo presente. depois gaba-se de ter muito trabalho porque é professora e que não tem tempo. ora o tempo também se faz tanto quanto se desfaz, haja vontade e da boa. vai daí, ignorei toda a sua conversa, disse-lhe explicitamente que não, e saí de lá a ouvi-la dizer que vem às sete da manhã antes de ir para a escola. excelente. é porque ando há mais de seis anos a injectar poesia na casa da sua tia, pensei, quantas vezes lhe liguei aflita e não atendeu. sms: estou num concerto e amanhã ligo. cabra. estou rodeada de cabras e de cabras badalhocas que andam com as mesmas calças mais de uma semana seguida, quer dizer, o que é isto, aquelas calças devem cheirar a bacalhau além de serem altamente reveladoras da monotonia dela. como é que alguém que é mulher consegue pegar nas mesmas calças todos os dias sem se cansar? olha, menina, da mesma forma que todos os dias durante estes anos todos olhava para a tia ao longe sem se mexer. tem estômago de glaciar, só pode. tenho de me controlar. porque se hoje aparece outra vez com as mesmas calças será o cúmulo da repetição que gera a narrativa de desleixo e de desapego, tenho de agarrar na minha língua e segurá-la bem como se faz com o peixe que escorrega enquanto se está a amanhar. que remédio. e o melhor remédio é, pois, fazer uma poesia: transformei um vestido antigo em uma saia, falta acrescentar um forro para inibir a transparência e fazer a cintura elástica para ficar um regalo. depois a saia, feita de poesia, em poesia se tornará sempre que a passear no dia, em um dia qualquer.

domingo, 19 de junho de 2022

sangue, lágrimas e suor

ia começar a ver o filme, feliz pelo reencontro, tão feliz, não era muito extenso e poderia acertar com os afazeres, quando como se a tivesse ouvido sem ouvir, porque seria impossível, fica do outro lado da rua, quem me dera ter ouvidos de cadela mas não tenho ou se tenho desconheço, talvez tenha, afinal, como estava a dizer, levanto-me e visto uma camisola de alças e pego em um vestido fresco de andar em casa para meter em cima da camisola, como se a camisola fosse - e é - um substituto do soutien sem ser, por ser, por ser porque em nada lhe cumpre com as mesmas funções, a camisola de alças apenas mete o soutien no sítio dele que é na gaveta, se eu pudesse todos os dias o soutien vivia na gaveta mas não pode ser, uma das funções do pedaço de tecido é evitar que se notem saliências. adiante. 

pego no telemóvel e na chave, volto já, digo, vou ali à Dona N.. ainda estou a meter a chave na porta quando começo a ouvir os seus gritos como se estivesse a rezar, jesus, meu jesus, jesus meu jesus, vejo-a na cama sem se conseguir mexer. sou eu, Dona N., digo enquanto já me sinto em tremor de carne, nervos em preguinhas de susto, abraço-a e percebo que não consegue levantar-se sozinha, chama-me anjo da guarda e demora uns minutos para me associar ao nome. levo-a até à casa de banho que fica no extremo da casa, barafusto, se tem algum jeito dividirem a casa assim, e também penso mas não digo na miséria que é a sobrinha ainda não ter chegado aonde não deveria de ter saído, deveria dormir lá enquanto não há outra maneira. demora uma eternidade para conseguir fazer descer a urina aguentada tantas horas e ainda tremo mais. depois vou abrir a janela e ponho a água ao lume para lhe fazer o chá para a primeira refeição enquanto lhe separo as pastilhas. jesus, meus jesus, jesus, meu jesus, continuo a ouvir e a tremer-me toda. penso que a continuar nervosa assim com tantas coisas dos outros que vêm ter a mim não tardará o meu sangue descer outra vez e talvez outra no mesmo mês como se o meu sangue fosse, e é, a minha maior reacção juntamente com as lágrimas e o suor. naquela altura já estava encharcada em suor só de estar a arranjar uma forma de a levantar para a fazer chegar à cozinha e as lágrimas tive de as aguentar até bem mais tarde. entretanto chega a sobrinha para lhe dar o pequeno almoço eram quase onze da manhã. que tristeza, já estava, pois claro que já estava, eu ouvi-a sem a ter ouvido e tremi o que não deveria tremer e, sim, o sangue que deveria estar sossegadinho voltou a descer. já não bastava o monte de gente reles do pão, a dor de ouvidos, o dente, e o maldito antibiótico do tamanho de um ovo de codorniz que me fez rebentar o rabinho por durante oito dias o engolir. porque os nervos perante as injustiças rebentam-me toda.

sábado, 18 de junho de 2022

Olinda no país das maravilhas

assim que eu pude escolher como queria, rodeei-me de espelhos, quanto mais peculiares melhor, molduras em relevo de rosas, laços e lacinhos nos cantos, outros velhos com manchas do tempo, outros com tecido esponjoso que pintei de dourado. tenho um que pendurei brilhantes na madeira acabada de alterar, de preto o fiz pérola, e outro que é um sol. depois há um pequenino com bolinhas coladas em redor e aquele com talha dourada e colada que apanhei ao pé do lixo quando ía a passar: recuperei-o só para mim. e muitos mais. mas nunca tinha percebido bem de onde vinha esta paixão, a de ter um espelho sempre à mão e ao lado e por cima como se fosse o meu pé.

epifania, !ai!, que depois de apreciar as flores que me deu, tenho a mania de as cheirar como minhas, sai-me de rajada que se elas forem espelhos de nós nunca estamos sós. e é isso, querida Olinda, o segredo é estarmos rodeados de flores que nos enchem o coração.







sexta-feira, 17 de junho de 2022

o sofá do conforto dos outros

o livrinho escuro tinha chagado na quarta, fui buscá-lo aos CTT, e li-o ontem de manhã cedo em uma assentada. nada de novo, portanto, até me parece, pelo conceito, um pastiche da parte escura do livro do Rei - mas só da parte escura e não como um todo e muito menos pela parte que me reiluminou assim que o li: o brilho ultra-romântico.

como estava a dizer, li-o em uma assentada e penso nas cinco estrelas por tanto que já conheço: do particular para o universal só vai quem conta os tiros no escuro. ora eu divirto-me imenso com os escuros e os tiros dos outros, é verdade, por saber que é mesmo assim, palhaços com uma bola no nariz e uma cenoura no cu, cornos, desmesuradas irresponsabilidades, vícios, porcarias, enfim, erros justificáveis por conta de se ser humano porque ser humano é ser um erro feito de muitos erros. e depois a lengalenga literária de que é o escuro que nos faz vivos e aptos a desenvolvermos a nossa actividade vivencial, e tal, uma espécie de ficha de aptidão, que sem escuro não há vida e que andamos aqui mesmo só para nos fodermos uns aos outros e o resto é paisagem. 

então e onde é que eu fico no meio disto tudo, penso amiúde, olha fico a divertir-me com os erros da literatura sobre os erros da humanidade em geral e que não são, nunca foram e nunca serão, os meus em particular. porque eu não posso confessar o que não há, o que não me há porque não houve. e depois vem o choradinho do abandono e da punição porque há sempre alguém que no meio da podridão - a podridão que é normal nos podres porque ser podre é ser humano - dá de frosques. ora o meu escuro é pegar na faca ou na caçadeira e foder as ventas aos escuros que escurecem a vida dos outros; fodo-lhes as ventas até aos ossos e isso é-me irremediavelmente certinho.

mas o que me deixa triste no meio da palhaçada dos outros que me diverte na realidade da literatura é perceber claramente, na realidade fantástica, que estes são incapazes de perceber que é a claridade que me ilumina. e continuam, afincadamente, a escarafunchar o escuro deles próprios. é o sofá do conforto.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

talvez. talvez.

 e se o tempo, o tempo que se faz sol e chuva e vento e trovão, for meu súbdito? de repente, tudo é de repente, o calor abrasador derrete-se em vendaval e pingos grossos de se fazerem notar como quem diz, e diz, estou aqui, e depois o vento apressado assobia e espalha-se como que diz, e diz, não estou a assobiar para o lado e depois carrega-se em si para chegar a ela, chuva, e a chuva chove-se, passa de trote a galope misturada com o trovão da ordem como quem solta uma gargalhada possante como quem diz, e diz, quem manda aqui no reino do tempo sou eu, e fá-lo de forma estridente como quem pega no tridente depois de ouvir o eco és, és. então a rainha do tempo sabe que com o calor abrasador algo está para estourar, é ela que não tarda vai morrer, tal e qual como quando foi com o calor da filha, também morreu depois de eu tanto a socorrer, valeu a pena socorrê-la, morreu com mais doçura, talvez, talvez tenha morrido arrependida de nunca ter socorrido ninguém, e agora morre a mãe já a roçar-se nos noventa e em mim, eu que pareço já ter cem, choro-a com o vento que assobia e depois sinto os pingos grossos que me avisam da frescura que há-de vir para me continuar a acalmar também lá onde teimam em me humilhar, nada mais a fazer, o meu açucar não se pode enervar e então o vendaval começa a tocar, concerto que é para mim com o vocalista trovão a abanar-me toda: minha rainha ou ficas ou sais, pensa bem, porque se sais talvez possas perder mais, depois terás a punição, pensa no teu pai e no incansável sermão, não queiras depender dele, não, e então o trovão solta a gargalhada estridente para cessar o meu cansaço pela exaustão, cenário de guerra no ar, tantos a morrrer e outros tantos por matar, tudo entra em mim. pára tudo, ordeno, quero gotinhas ping ping,ping, brisa em pé de dança, sono bom. amanhã é outro dia e outros mais tranquilos se seguirão. talvez. talvez.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

conicha triste e treinador azeiteiro

 todas as madrugadas tem sido isto, é assim, páram o carro mesmo aqui à porta, ficam na conversa com o motor ligado e a música ácida a dar nas alturas e depois ele saca um pião como se o pião fosse, e é, a sua virilidade em exibição. são dois cabrões, portanto. ela, em vez de cuidar da filha que teve com outro azeiteiro não vai muito tempo, vai, noite dentro, treinar a conicha e ele, que não é daqui, é o treinador acelera de conichas tristes. mas o mais engraçado é que os vizinhos é que se fodem, pois claro, não uma vizinha como eu que acorda cedo, os vizinhos que precisam de descansar com sossego e para quem a madrugada ainda é meio do sono. um dia destes armo-lhes a tenda. ando aqui a pensar ao sol em uma ratoeira de descasca pessegueiro para os lixar. badalhocos.

terça-feira, 14 de junho de 2022

quebras e quedas e jindungo a correr para o abraço

 uma quebra de energia pode ser uma queda. faço tudo a correr para chegar o mais cedo possível depois do almoço, muita vontade de receber o que tem para me dar, chego a pingar, o calor quase me mata: odeio-o, odeio o calor, e tudo se desfaz: não há luz, não há ar condicionado e depois não há servidor, e depois de algumas horas dizem-me que posso ir embora a faltar meia hora do fim, do fim que é sempre o início do dia seguinte, o fim de ontem é o começo de hoje. acho estranho não me abrir a porta, apesar de ter a chave, mas não forço porque recuo e vejo as persianas fechadas. não, não vai ser hoje que o que todos os dias me diz se vai dar, não vou encontrá-la morta em uma poça de sangue logo na entrada. desvio o pensamento e faço tudo com calma e com tempo, o que uma simples meia hora a mais me faz, tão bom, que bem que sabe, consigo recolher-me mais cedo para me consolar. entretanto ligo e a sobrinha dá-me a notícia de que teve outra queda, uma queda por cima de outras quedas e por debaixo de tantas outras que nunca deu mas só desejou dar. entristeço e penso em um plano para amanhã, hoje, conseguir animá-la à distância de um telefonema e, no fim do dia, orientar-lhe a nova medicação que ainda desconheço. se ao menos me deixasse, permitindo-se, dar-lhe música. não se permite e eu não ando aqui para convencer os outros do que quer que seja. não quer, não quer.

volto-me para mim e para o meu final de dia feliz já a pensar no amanhecer que virá, certamente. porque uma quebra de energia não pode ser uma queda, não pode ser porque eu não deixo e não quero que seja. eu estou no meu comando. e rio-me só de ler de raspão a notícia que pisca na lateral direita mais ou menos assim: trocar o lixo nos contentores por mensagens picantes. ora sem fazer a mais pálida ideia do que se trata, ainda sem fazer a mais pálida ideia, vejo logo um punhado de jindungos frescos e arrebitados a fazerem uma serenata às cascas de cebola e às espinhas de um robalo absolutamente despido. e rio-me antes de lhe ir dizer que estou viva por abraçá-lo.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

 a guerra provoca-me diarreia, seja ela qual for, diarreia e pesadelos e 

como eu queria ter uma paz de bolso branquinha

para amiúde sacar dela

e atingi-los bem lá no peito

por conta de ser no fundo do peito

que nasce a nascente

da água

domingo, 12 de junho de 2022

escrevo como se ninguém me lesse

 isso, escrevo como se ninguém me lesse. esta espécie de ritual que antes era no papel, o original, de repente passou para aqui - uma janela que se abre para a outra janela, parece-me interessante que o de repente, o instante, fique registado assim, !ai! de mim, como se a baínha a descoser, tão linda, ficam as linhinhas soltas e marcadas até que nunca acabem as alvoradas. e penso no que é ser sacrificial neste jeitinho de ser, trrimtrrim, já não vais fazer a sesta, irmã preciso de ti, tragédia descomunal e o menino viu e ouviu e está mal.

arrependo-me assim que cheguei. pensei em alguma desgraça, um acudam que há inundação, terramoto ou coisa e tal mas afinal não. afinal foi mais uma cena conjugal, enfim, e deixei-me de me descansar, pobre de mim, penso já no fim, pelo menos fico mais descansada porque fui e já não estou tão pesada - ou se calhar agora é que fiquei com mais uma bagagem de preocupação, carregar as dores do mundo não é fácil, uma peregrina corcunda com a perninha a andar e a dar é uma rica imagem, não está mal.

escrevo como se ninguém me lesse, é verdade. assim como é verdade que escrevo por querer tanto que me entenda já que o carrego, noite e dia, no meu peito e na minha cabecinha de cristal, posso dizer estas coisas aqui e assim porque não há como ficar sem jeito. varre-se-me, sempre se me varreu, a timidez de lhe contar tudo; de contar, meu amor.