segunda-feira, 20 de junho de 2022

poesia

às vezes canso-me. às vezes penso: hoje não vou fazer do dia poesia e fico a observar e canso-me também. porque se eu não fizer do dia poesia, alguma coisa tem de ser poesia, o dia não é dia. fica uma página em branco, sem nada a registar. porque o mundo está cheio de gente descontente que nada tem para acrescentar, faz-me confusão, gente que vive por fora. aquela também estava a querer esticar a corda comigo, não sei bem por que razão as pessoas pensam que podem esticar a corda, deveriam pensar ao contrário: então se é paciente e tolerante e perseverante, mais uma razão para considerar e respeitar em triplo. mas não, fazem ao contrário, ela estava a querer que hoje fosse eu a lá ir cuidar da tia antes de ir trabalhar. então esticou a corda. tenho reparado que usa as mesmas calças desde segunda-feira e o tempo que lá tem estado, deve andar com medo que alguém faça queixa dela por não cuidar da velhinha doente, em vez de limpar e arejar a casa, de lavar e aprumar a tia, fica no telemóvel só a fazer corpo presente. depois gaba-se de ter muito trabalho porque é professora e que não tem tempo. ora o tempo também se faz tanto quanto se desfaz, haja vontade e da boa. vai daí, ignorei toda a sua conversa, disse-lhe explicitamente que não, e saí de lá a ouvi-la dizer que vem às sete da manhã antes de ir para a escola. excelente. é porque ando há mais de seis anos a injectar poesia na casa da sua tia, pensei, quantas vezes lhe liguei aflita e não atendeu. sms: estou num concerto e amanhã ligo. cabra. estou rodeada de cabras e de cabras badalhocas que andam com as mesmas calças mais de uma semana seguida, quer dizer, o que é isto, aquelas calças devem cheirar a bacalhau além de serem altamente reveladoras da monotonia dela. como é que alguém que é mulher consegue pegar nas mesmas calças todos os dias sem se cansar? olha, menina, da mesma forma que todos os dias durante estes anos todos olhava para a tia ao longe sem se mexer. tem estômago de glaciar, só pode. tenho de me controlar. porque se hoje aparece outra vez com as mesmas calças será o cúmulo da repetição que gera a narrativa de desleixo e de desapego, tenho de agarrar na minha língua e segurá-la bem como se faz com o peixe que escorrega enquanto se está a amanhar. que remédio. e o melhor remédio é, pois, fazer uma poesia: transformei um vestido antigo em uma saia, falta acrescentar um forro para inibir a transparência e fazer a cintura elástica para ficar um regalo. depois a saia, feita de poesia, em poesia se tornará sempre que a passear no dia, em um dia qualquer.

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