domingo, 31 de julho de 2022

o mel. e a pimenta rosa.


de repente. tudo nasce de repente. e se, ao segundo, de repente, o que há crescer, crescer, quente que permanece quente a escaldar, arde sem queimar e fica como algodão do céu onde me posso deitar sem véu, planar, sonhar, espreguiçar o mel. e a pimenta rosa.

sábado, 30 de julho de 2022



não quero viver em desapego

 acordei a chorar, no sonho estava ele e estava ela. só que ele está vivo e ela está morta, tudo se misturou, então e eu estava lá com os dois, mas ela está morta e ele está vivo. e eu, em que estado estou, perguntei-me assim que acordei, vivíssima estou com certeza ou não sentiria a vontade quase incontrolável de me ser nele e com ele mas também morta poderei estar por querer tanto encontrá-la, sentir-lhe o pêlo sedoso e abundante, beijar-lhe os olhos que falavam, ser-lhe a todo o instante. se calhar não fiz o luto dela, sim, sei que não fiz e nem vou fazer porque quero que viva, e vive, para sempre comigo. faz-me falta a sua ternura e o seu apego, não quero viver em desapego, o desapego é para quem desconhece o sentir sincero em carne viva de inverno, de primavera, de outono e de verão. apego é emoção.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

passo as horas a contar os segundos para chegar, para chegar ao lugar onde está, onde pode estar, só para dizer que cheguei e estou sempre a chegar mesmo que não me saia deste lugar onde me habito, onde se habita coladinho a mim neste sentir sem fim porque fim dele em mim só se for mesmo o fim da tarde para começar na noite e recomeçar de manhã, 

lalalalala, 

Ramor meu, 

Ramor meu, 

não haverá alguém, 

nem a rosa

nem a grama

nem o sol

nem a rã ou gato ou ave

tampouco fiorde, monte, rio, mar

que te Rame mais do que eu

sim. sim.

!ai! de mim


 

terça-feira, 26 de julho de 2022

os meus olhos fecham-se e não me canso de o beijar. são beijos intermináveis, perfumados de frutas e de flores e de gengibre com mel. os beijos que lhe beijo são a invenção maior do universo: são a elegia ao meu coração que canta e que dança e que diz, como quem diz e diz, que os beijos que lhe beijo são palavras em modo feliz.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

levanto-me porque aprendi a levantar-me

resvalo lá para longe onde tudo começou. quando fico triste resvalo para a escola primária e depois a preparatória, sinto exactamente a mesma coisa: esta é a menina que não tem mãe, não ter mãe como se fosse - e foi - o meu maior predicado; não poder viver com direito adquirido aquilo a que deveria ter direito. ter direito a ser ela a escovar-me o cabelo, a vestir-me roupa passadinha a ferro, levar-me a uma festinha de aniversário, levar-me à escola pela mão e carregar a minha mochila, dar-me um beijo e uma recomendação misturada com um sorriso; ter direito a receber reforço positivo pelos resultados excelentes das composições, ter direito a escolher a comida preferida, ter direito a brincar sem preocupações. em vez disso ganhava riças por não gostar de me pentear, ainda hoje ando com as penas encrespadas, a minha roupa nunca estava impecável nem era muito variada, tinha de ser eu a levar a irmã à escola e a preocupar-me enquanto os via brincar com o bebé no colo. depois tive de aprender a passar a ferro e a cozinhar, festinhas passei a odiar - ser a menina que não tem mãe não era o que eu queria ser, apenas o que tinha direito a ser. e agora, quando fico triste, sinto exactamente a mesma coisa, agora que sinto o amor e o desejo em um só, o amor que é bonito, o desejo que é bonito, como só me pode ser, não tenho direito a viver, sou a menina que não tem mãe e que tem de fazer tudo sozinha, é o que eu sinto quando fico profusamente triste. depois levanto-me, claro, levanto-me porque aprendi a levantar-me, a menina que não tinha mãe teve de aprender a levantar-se sozinha, levanto-me. e não adianta pensarem que me levanto porque me desviaram a atenção ou me deram algo para me entreter. eu levanto-me porque me sei levantar. como se levantar fosse o intervalo de entristecer e como se entristecer fosse um castigo.

domingo, 24 de julho de 2022

aos olhos parece que vai partir

acordei e fui espreitar a telinha que ficou a secar. experimentei algo novo, ontem, eu que desconheço técnicas e tudo me sai no momento com a ponta dos dedos: por cima das tintas de óleo, três camadas de cores diferentes para achar o tom, deitei aleatoriamente acrílico e aconteceu algo improvável - improvável no meu leque de possibilidades por não estar a pensar em possibilidade alguma, pintar não é pensar: a tela começa a adquirir um aspecto velho e enrugado como se o tempo aparecesse, e apareceu, tal e qual como se fica. a minha telinha é muito frágil, aos olhos parece que vai partir. e só eu é que a adoro, não faz mal, digo-lhe, eu valho por um universo inteirinho.

sábado, 23 de julho de 2022

deve estar com o bonito petiz, lembro-me vagamente do seu rosto de uma vez que vi, e o petiz fez o retrato, então se está com o petiz só pode estar feliz porque o petiz é sempre um amor feliz. será que têm cuidado com a pele, penso, o sal com água e sol às vezes não dá em mel, porque a felicidade pode fazer esquecer que há o torrar sem perceber, absortos um no outro, os dois bonitos, não, hão-de usar toda a protecção, cala-te já, não sejas chata, e deixa-os a amarem-se e em verão.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

até onde as urtigas te irão perseguir

 e depois há o ciúme, esse bicho que sai do mato sem se ver e começa a picar, é parecido com a azia, arde e queima, expande-se desde o estômago até ao mindinho do pé, estou a explicar como é, depois também vai para a cabeça, ouve-se latejar até que pára na bomba, como se a quisesse matar, e parece que mata, o bicho que sai do mato que deve achar que é indomável mas não é. agarro nele, torço-lhe as orelhas grandes e bicudas, tiro-lhe a força, depois calco-lhe os pés até o ouvir guinchar, e faço-lhe do rabo comprido um rico nó onde o posso agarrar sem escorregar, fica entre a minha mão e o seu pulsar, transpiro e trinco a língua, metade fica de fora, aguento um tempo, já está, bicho do mato insolente, prepotente, intransigente, agora quem manda sou eu, vou-te largar, pisga-te, oupas, vai-te, desaparece, põe-te a andar até onde as urtigas te irão perseguir se me voltares a atacar.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

vão comprar outras à china. a pé

vem uma e despeja os problemas, atendo outros que despejam as frustrações, berram, dizem palavrões, chego a casa e este despeja o que não despeja dos colhões, é mesmo assim, anda o mundo a querer despejar tudo em mim, depois é um que não paga, outro que não assina, pedem-me satisfações, a bruxa que faz boicotes, as vassalas com caras de quem esconde o corte nos travões, o calor que me derrete, os nervos na retrete, as lágrimas que só querem saltar, saltar, sem escolherem a hora e o lugar, como eu queria miminho, Riminho, desato a gritar sem gritar, não ouvem, só ouço eu, não sou vossa mãe nem quero ser mãe de ninguém, estou farta, vão lavar as fraldas ao mar, não, melhor muito melhor, deitem-nas fora e vão comprar outras à china. a pé.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

entregar, deixar isto que é o António

desde que fui para lá trabalhar que criámos uma espécie de amizade. a Rosinha é a costureira que tem um ateliê mesmo em frente, lá nas galerias, é mulher do empregado-escravo de confiança do meu patrão. ontem a Rosinha estava feliz, corte de cabelo novo, olho pintado de azul, quando nos cruzámos nas escadas. tenho uma coisa muito importante para lhe contar, Linda, chama-me Linda, sinto-me leve e fresca porque finalmente ganhei coragem e liguei à dona do ateliê a informar de que em final de agosto já não regresso, vou deixar isto, entregar tudo, cinquaenta anos a fazer o que não gosto é muito tempo e já falei com o António e com as minhas filhas, quero encostar, viver tranquila sem ter de as aturar, estas clientes - a Linda sabe - derretem-me os nervos e a paciência, humilham-me, então vou para casa fazer outras coisas, descansar. abracei-a e beijei-a e confortei-a e dei-lhe palavras de orgulho - orgulho porque a Rosinha sofre de depressão crónica e eu tenho ajudado um pouco, todos os dias lhe dou um sorriso e uma palavra de força e atenção, gosto muito dela, cedo percebi tratar-se de uma pessoa com um grande valor, excelente mesmo. então a Rosinha ontem estava feliz. talvez a próxima etapa seja a de conseguir deixar o marido, o marido como o ateliê que ela teve de aguentar durante cinquenta anos sem gostar, porque o marido da Rosinha desconhece-a, nada sabe dela, não lhe dá atenção, sequer consegue vê-la. talvez o próximo esgar de felicidade da Rosinha seja quando me disser Linda, tenho uma coisa para lhe contar, estou muito feliz, consegui dizer ao António que o vou entregar, deixar isto que é o António.


terça-feira, 19 de julho de 2022

esta noite prolonguei o dia

como todas as noites e todos os dias

eu sei

lambi-lhe a célula e a amigdala e o cortex

a máquina e a mão

a possibilidade e o talvez

a neve e o sol

o movimento parado

e o cristal

o aço e a flor

é tão gigante e pequeninho o meu Ramor

segunda-feira, 18 de julho de 2022

hino triunfal

percebesse eu de música

compunha-lhe uma melodia

juntava nela todos os sons bonitos do mundo

e ainda mais alguns inventados

receitinha olindesca

depois ouvia-a sem parar

convocava a assembleia geral dos bichos e das flores e das pedras

presidida pelos rios e pelos mares

perante o tecto infinito de alumbrar

e declarava-a o hino triunfal

e era pouco muito pouco

afinal



domingo, 17 de julho de 2022

pois

agora ela não tem tempo para mim, agora desde que recebeu - ela e o marido - os nove refugiados em sua casa, são família, não tem tempo para mim e compreendo-a. uma das meninas tem um cancro e só ela pode acompanhá-la ao IPO, por causa da língua. também tem de acompanhar as crianças na escola, por causa da língua. e tem de gerir tudo o resto enquanto o marido vai trabalhar, está desempregada. de vez em quando vai até lisboa descansar, para casa da filha que só pensa em ser uma estrela, e também não tem tempo para mim. compreendo, compreendo sempre tudo, não é por isso que deixo de ajudar. mas deixei de fazer tudo aquilo que a filha pode fazer e não faz, a filha que vive para mostrar o que não tem, ser o que não é. porque se tem tempo para registar tão assiduamente o que come, o que bebe, o que veste e o que despe, onde vai e onde fica, nas redes sociais, então que use esse tempo para fazer o que a mim me pediam. pois.

sábado, 16 de julho de 2022

ter um mundo limpo pela minha mão

eu digo, eu digo o que aquelas porcas andam a comer: arroz com atum em óleo, pataniscas de chouriço corrente, mixórdias pré-cozinhadas descongeladas no microondas, calamares murchos com batatas fritas de presunto. é que é cada porcaria pior do que a outra que me dá nojo e exclamação. e depois ficam a olhar para as minhas sopas e para o resto que não é restos, que antecedem sempre o resto, o resto que leva tempo a preparar de véspera, pois claro, é preciso dedicação para cozinhar e para comer. ora isso explica bem a forma de estarem e de serem e de trabalharem: estaão e são e trabalham em óleo, chouriço corrente e descongelação à pressão. são porcas. e a porca-mor, que esta semana esteve de férias, vai regressar para festejar a porcaria - mesmo antes de sair percebi que receberam mensagem comum, reservaram-se sem me chamarem na copa, receberam instruções para a semana que se segue que tenho de vencer. 

porque vencer pode ser simplesmente aguentar, inibir a perturbação. mas isso é muito pouco, tão poucochinho, para quem deseja, como eu, ter um mundo limpo pela minha mão.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Ralibabá

 se este calor não parar, um dia vou derreter

depois de acordar duas mil vezes durante a noite

para depois adormecer

qual alibabá

qual livro, qual canção

duas mil noites que passamos juntos

é o mote dos meus sonhos

em bicos de beijos e rendinhas e sussuros

tantos abraços e amassos

tantas brisas meiguinhas nas persianas a fechar

para depois se abrirem

insónias de duas mil noites

com o Ramor das arábias

à minha moda inventado

e sonhado

Ralibabá, bababáRali

quinta-feira, 14 de julho de 2022

delito não é delitro, menina, deleite-se

em cada canto há uma pessoa maluquinha a respirar e a emanar maldades e crueldades para o ar, cargas negativas, que todos temos de engolir já que o ar é um espaço comum. depois filtramos e separamos e vamos a correr buscar perfume. de alguma forma ontem, naquela hora improvável, fui procurá-lo e encontrei-o. deitei-me no seu algodão e cochilei um pedacinho, sosseguei. depois abanou-me a voz da oposição: não podes estar aqui a esta hora, menina, raspa-te, salto dali para acolá, onde também não deveria estar mas onde decidi ir quando me apetecer, uma espécie de infracção consentida por me fazer todo o sentido. a diferença entre as infracções é mesmo essa: uma causa-me culpa e a outra não - porque uma associo a ócio, água e nadar, e a outra a escola e a lição, pensar e dizer e refilar e criticar e assentar ideias. é estranho mas também não estranho por conta de já não me estranhar. entranha-se, menina, diz-me o Pessoa perante o flagrante do delito. delito não é delitro, menina, deleite-se. ouço-lhe o conselho e sossego a culpa: só tenho de esperar mais um par de horas, a vida é fodida, um par de horas como o passaporte para o banhinho fresco com pétalas e linhas e rocha e cores e palavras que soltam, e me soltam, dos horrores.

e de onde vem aquela perfeição que aos olhos me são seda pela sua mão? queria ser eu a escolher e a cortar as tulipas, explicar-lhes a eternidade para onde vão, vê-las ficarem felizes por saberem que me serão as deusas das deusas - um grande, enorme, gigantesco, coração.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

marcado a fluorescente cor de rosa

lembrei-me e partilhei-o e reli-o. gostei muito de o reler, há pormenores que já não me lembrava. é estranho, lembro-me exactamente do dia em que o escrevi, comecei e só parei quando me apeteceu, e não me lembrava de tudo o que escrevi. sorri. é, de facto, um mistério muito grande o sítio onde nasce aquilo que vemos, que só nós vemos. é-me epifania, sai e pronto. agora, a anos de distância, já consigo decifrar as camadas das cebolas. sim, das cebolas. no plural. e ele tem muita razão, sim senhor, quando me disse que o que vemos é muito diferente do que dizemos. porque quando o leio já me aparece a voz, daquilo que importa, marcado a fluorescente cor de rosa. e guardo, não tenho de dizer, muito menos porque sei que outros estão a ver, são segredos partilhados que reservo e afago. depois embalo-os, beijoqueira incurável, para ajudar a dor a morrer.

terça-feira, 12 de julho de 2022

ó rapariga estás atrasada, cala-te, ainda tenho um fiozinho de tempo para dizer que não fossem os mosquitos porqueiros a atazanarem-me o sono, a propósito descobri que eles não gostam da ventoinha, ahan, agora é que vai ser, a ventoinha como o meu cérbero de estimação com três cabeças: vinde, vinde, daqui não ides sair, !ai! que riso, como estava a dizer, não fossem os mosquitos tinha continuado a sonhar com Aristóteles que Zeus me deu e hoje vou terminar. imaginei-o a dizer que quereis, Homero não é responsável pelas interpretações que dele fazeis - vós não sabeis é ler, tal e qual como eu digo lá quando deturpam os meus emails. que consolo.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

tonta

mesmo antes de dormir ouvi-lhe a voz, a voz como um xarope milagroso para as minhas arreliações - a voz que se mistura com os olhos e os gestos, um verdadeiro concerto. rio-me e roubo-lhe a expressão. és uma tonta.


domingo, 10 de julho de 2022

 a minha casa, a casa que escolhi para viver doze anos, doze anos só porque a vida assim traçou, era um lugar mágico. havia rendinhas por toda a parte. era cortinas encantadas em espaços improváveis, era a pintura nas paredes - como se as paredes fossem, e são, telas gordas - e nas portas de madeira, era as borboletas gigantes que pousavam nos candeeiros e as pequeninhas que refrescavam o frigorífico e a arca e perfumavam outras máquinas que nos aliviam a carga dos trabalhos domésticos, era a sereia em barro antigo que reinava na entrada junto ao espelho, era os mil e um espelhos incríveis na forma e nos materiais, era as jarras e as flores que copiosamente emitiam um perfume colorido, era os quadros que pintei e inventei juntando tecidos e pedras e folhas e brilhos. depois foi tudo lá para a garagem da outra irmã, pensei, não tardará e venho buscar. passaram dez anos e nunca tive outra casa para encher de magia nem outro espaço onde voltar a guardar. e no dia da chantagem, olha, tens de vir buscar as tuas coisas senão vou chamar um camião de recolha e vai tudo para o lixo, aproveitas e trazes as coisas do Afonso. de maneira que, como não cedo a chantagens, ela há-de ter-se governado bem e recheado a casa dela com umas coisas e ganho algum vendendo outras.

de vez em quando vejo a minha casa, as minhas rendinhas, e choro muito. vejo os amores perfeitos a contornar a varanda gigante com vista de mar e da reserva natural; vejo os esquilinhos que tomavam o pequeno almoço comigo sem o saberem e vejo a minha valquíria a rabiar e a pedir-me colo para nada, absolutamente nada, do que vinha de mim lhe escapar.



sábado, 9 de julho de 2022

e se é hoje?

e se é hoje, aos nove de Julho, que o meu Ramor se celebra no seu jeito de ser Portentão, Conde, Zeus, então eu acordei logo depois da meia noite porque o senti no meio do inferno do calor, será ele a tal brisa e chuva fresquinha que o tempo afinal me mandou, por dentro do meu refilar. !ai! se eu pudesse contar-lhe nos olhos e na pele, deste meu grudar de gengibre com mel, começava logo a festejar com uns sininhos meiguinhos, muitos beijos linguados sempre crescentes e depois preparava-lhe petiscos ao som de uma música a cantarolar, era uma estrela para um estrelado, brilhos muitos soprava, ficaríamos cobertos em um manto de flores e de águas de rosa, poesia, !tanta! na prosa, e depois ver a direitinha a sorrir, arregaçava a emoção, pois claro, fazia parelha com os olhos que se rasgavam também, brilhantes, brilhantes, como se fossem uma travessia em uma piroga lá num lago para lá dos montes, o sítio do imbondeiro amarelo vestido dele e de mim e de nós, um paraíso que nunca se perdeu e que foi inventado para ser só nosso e da nossa voz e muito mais, muito mais, e se é hoje, vou andar agora a perguntar ao ar, refilona, até o ar me expulsar de tanto ouvir e se é hoje que se celebra o meu Ramor. de repente, páro. e o ar dá-me dois beliscões: ó menina, se é hoje passa a ser amanhã e depois de amanhã também: todos os dias são os melhores dias para ofereceres o teu melhor a esse alguém. tens razão, ar do meu arfar, todos os dias eu o celebro por dentro e por fora de mim neste Ramor que parece, parece por que é assim, neste Ramor que só teve começo e não lhe pressinto fim


. !ai! de mim.

  • o calor é um cabrão, deixa-me torta e exaurida e dorida e refilona. esta noite acordei ensopada, passava da meia noite, toda atordoada. agora delicio-me com a brisa que nem sequer é fresquinha, é só morna, também detesto o morno que nem é frio nem é quente. queria uma chuvinha fresca para me aliviar a tensão da cabeça e dos ombros, carregar o calor não me é fácil nem feliz.
  • ó tempo, estás a dar-me coça. bem sei que estás no teu tempo e nada há a fazer. mas e se descansasses um pouco no tempo do teu tempo de ser só para eu não me arder? e se fizesses essa gentileza por mim, podia fazer-te um petisco e uma canção e engendrar uma camisete de linho ou assim um presentão.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

esse amor com paixão

 é impossível lê-lo e não rir ou não sorrir ou não chorar ou tudo ao mesmo tempo. dizem os sábios das letras que a perfeição leva muito tempo a ser atingida, esquecendo o ímpeto da imperfeição que nos torna humanos.

ora ele é a obra de arte mais arte que eu já li seja em que registo for. não interessa sobre e como escreve: a sensibilidade com que produz, por ser o cúmulo da sensibilidade, torna-o no ser humano mais perfeitamente imperfeito de todo o universo. 

ele é, o brilho maior, o brilhante que eu gostava de ter em mim e comigo até ao fim do mundo, até ao fim do mundo porque sendo um brilho maior o mundo é que estará sempre para acabar, não e nunca e em tempo algum nele nem em mim. é o mundo que tem fim, amor, esse amor com paixão que eu sei que há como eu quero. como eu só quero. como mais ninguém tem.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

, e é,

eu sei que é este mês mas desconheço o dia, cáspite, como eu queria saber o dia. mas que interessa saber o dia se todos os dias são de alegria? não, cala-te, não é bem assim, 

é preciso saber tudo

para não entristecer

como se viver fosse

, é é, 

nascer e nascer e nascer 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

até nisso ele me é amor

nunca me hei-de cansar de dizer que as mulheres são umas cabras. e são ainda mais cabras quando percebem que eu não sou cabra, é assim uma espécie de serem - em frequência acumulada - pela inveja de eu não ser mas de ver que são. abri as pestanas, demorou tempo mas abri. porque lá, na montra para o mundo, tudo o que se disser com o nosso nome e com a nossa pele, fica para sempre - uns copiam, outros inspiram-se, outros desdenham, outros julgam, outros abusam e nada, nada, vale essa consumição e essa consumibilidade quando somos livres para dizer o que queremos mas não o suficiente para gerirmos as consequências do que dizemos no trabalho, no trabalho onde não podemos dizer o que queremos a quem queremos. 

de maneira que tudo o que eu dizia era um saco de balas que usavam contra mim - tentavam decifrar-me com todos os perigos que isso implica e a minha vida era ainda mais difícil. tudo era aproveitadi e reaproveitado e utilizado e reutilizado. espera lá, se eu me calar elas - e depois eles por elas - ficam a saber o mesmo e a navegar na maionese e a patinarem nos comportamentos ensaiados que costumam ter depois de eu me dar a ler. pois. e depois, também se acabou a musa dos mamões - dos que são fina flor e que sempre me desdenharam, os mesmos que também me copiavam e brilhavam. 

que bom, agora é que eu respiro bem de flor em flor. até nisso ele me é amor.

terça-feira, 5 de julho de 2022

e se Deus é masculino, perdoa-me. era o que ele deveria pensar

ora bem, vamos lá ver, os padres usam aquelas vestes de saia largas e compridas para não se notarem as erecções, pois claro, não são assexuados e a carne com que nasceram pendurada quando fala não dá para disfarçar. obviamente que haverá quem transforme a energia sexual em criativa mas isso é outra coisa paralela porque ainda assim antes de o ser ela manifesta-se e tem de sair, sair por sair não é um orgasmo, para depois sair outra vez e aí depois talvez o seja de forma metafórica. o padre antónio vieira, por exemplo, por debaixo daquele vestido vermelho de veludo carregava, com toda a certeza, erecções que não poderia contrariar porque era feito de carne. como ele fazia, não sei, talvez andasse sempre a esgalhar a fruta ou a relacionar-se furtivamente. e se Deus é masculino, perdoa-me. era o que ele deveria pensar quando fazia as descargas.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

 adormeci de barriga para baixo agarrada à almofada a abraçá-lo, como sempre abraço, adormeci como uma princesa. as mãos que escreveu ficaram a bailar por cima da covinha das lágrimas e do ranho. ah, pois, mas é essa covinha que te safa, menina, essa covinha e o tanto que despejas dos intestinos logo quando acordas, como se adormecer e acordar fosse, e é, guardar o melhor e expelir o pior. de maneira que lágrimas e cagalhões perfazem o mote perfeito da minha existência. 

o que eu gosto dele no que vi sem ver sem conseguir justificar não é de acreditar, é daquelas coisas singulares todas no plural, todas a multiplicar e a somar que tenho de dividir para não me subtraír. é uma estranha clareza e uma inevitável leveza natural e fundamental, uma palpável força transcendental e um brilho de estrela cadente com cheirinho de pasta de dentes de mentol tal e qual como acho eu  a que sabe o sol pudesse eu o trincar depois de o estrelar como se faz com as omoletes ricas em salsinha e queijo. ainda tenho tempo de reler mais uma vez para gravar mais umas expressões que me fazem cantar no caminho do asfalto que sou obrigada a calcar.

domingo, 3 de julho de 2022

às vezes é o maior cabrão de todos

pus-me a caminho para fazer o teste, será quase impossível não ter apanhado o vírus, sou a única que ainda resiste, depois de tanta proximidade durante uma semana terei com certeza, vou fazê-lo já na farmácia e assim não vou ter de me preocupar com nova testagem e ligação para o SNS, fica tudo tratado de uma assentada. quem me dera não estar covidzada, quem me dera não ficar doente e, se ficar, que seja algo tão leve que não me iniba de rabiar, penso repetidamente, estou com a cabeça em água, exige de mim o que não exige de mais ninguém, dou-lhe tanto a esbordar e fica mau, raivoso, cabrão. e se eu ficar doente, além de ter de continuar a dar não vou ter quem me dê a mim, elas não podem deixar os maridos e os filhos, vou ter de me arrastar e sacrificar a dobrar, não, não posso ficar doente.

negativíssimo. sozinha fiz uma festa antes de regressar e ter de estar com o cabrão, às vezes é o maior cabrão de todos, e compro as farturas que andava a desejar. como duas, fico enjoada, e fico a pensar no que me enjoa mais antes de abrir a porta. só quero despachar tudo e chorar. até adormecer de exaustão.

sábado, 2 de julho de 2022

e se for tango?

ninguém sabe o que acontece durante o sono quando saltamos para uma realidade paralela incontrolável na consciência e onde tudo pode acontecer. é como se fossemos levados para um livro ou para um filme ou um disco onde há uma história, outras vezes vários contos, outras ainda pequenas aparições - uma espécie de assinaturas sequênciadas sem sequência alguma. há dias, dias nas noites, em que sequer nos lembramos de alguma coisa e é como se, restaurados, tivessemos dormido a correr. é um mistério, a pequena morte. depois temos os pássaros a refilar e os galos a elevar a voz e os cães a falar em desconcerto e as árvores a deixar as geadinhas darem banho às folhas para nos avisarem de que a vida está aí à espreita ainda com remelas frescas no vestido cinzento que vamos pintar.

porque a vida também é um quadro que todos os dias pintamos ou deixamos por pintar, um papel em branco que todos os dias escrevemos ou deixamos de escrever, um vinil que não pode estar riscado para escolhermos o que queremos ouvir e cantarolar e um pezinho de dança dar.

e se for tango, e se só nos sentirmos que queremos tango?

sexta-feira, 1 de julho de 2022

de ser

querem saber o perfume que uso. ela anda há seis anos a querer saber o perfume que uso e agora as outras, que vão chegando, também. e todos os dias arranjam uma maneira, uma rasteira, para ver se eu digo. ridículas, ainda não perceberam que estão a milhas de me conseguirem enganar - e a anos luz de saberem do meu perfume e do meu cheiro e da minha pele. não troco de perfume, é o mesmo há trinta anos, assim como não troco de cheiro nem de pele - de me ser no que é essencial.

o ódio também nasce da inveja de ser.