domingo, 10 de julho de 2022

 a minha casa, a casa que escolhi para viver doze anos, doze anos só porque a vida assim traçou, era um lugar mágico. havia rendinhas por toda a parte. era cortinas encantadas em espaços improváveis, era a pintura nas paredes - como se as paredes fossem, e são, telas gordas - e nas portas de madeira, era as borboletas gigantes que pousavam nos candeeiros e as pequeninhas que refrescavam o frigorífico e a arca e perfumavam outras máquinas que nos aliviam a carga dos trabalhos domésticos, era a sereia em barro antigo que reinava na entrada junto ao espelho, era os mil e um espelhos incríveis na forma e nos materiais, era as jarras e as flores que copiosamente emitiam um perfume colorido, era os quadros que pintei e inventei juntando tecidos e pedras e folhas e brilhos. depois foi tudo lá para a garagem da outra irmã, pensei, não tardará e venho buscar. passaram dez anos e nunca tive outra casa para encher de magia nem outro espaço onde voltar a guardar. e no dia da chantagem, olha, tens de vir buscar as tuas coisas senão vou chamar um camião de recolha e vai tudo para o lixo, aproveitas e trazes as coisas do Afonso. de maneira que, como não cedo a chantagens, ela há-de ter-se governado bem e recheado a casa dela com umas coisas e ganho algum vendendo outras.

de vez em quando vejo a minha casa, as minhas rendinhas, e choro muito. vejo os amores perfeitos a contornar a varanda gigante com vista de mar e da reserva natural; vejo os esquilinhos que tomavam o pequeno almoço comigo sem o saberem e vejo a minha valquíria a rabiar e a pedir-me colo para nada, absolutamente nada, do que vinha de mim lhe escapar.



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