andei a pensar e a ruminar no assunto, também fiz algumas pesquisas, já posso contar da sua, que agora também é minha, aflição. na quinta-feira, depois de tratar dos pendentes no exterior, liguei-lhe. às vezes tocam uns sininhos dentro de mim, confesso, e se tem dias que os ignoro por soarem ao de leve outros há que se o faço eles enfurecem-se comigo e tocam cada vez mais alto como se no alto de uma torre tocassem só para mim. nesse dia foi assim, não se calaram e liguei à minha A. onde estás?, pergunta-me imediatamente, anda ter comigo, estou a ir para o fim do mundo, voz trémula e a choramingar. fui a assapar pela arrábida, a outra ponte estava congestionada com um acidente, para a morada que me deu. cheguei e tive de ficar à porta a aguardar que saísse da junta médica virada para o mar da madalena, vento fresco, só eu é que lhe chamo fresco, os outros chamam-se briol, sol tímido por sorrir, e ensaio despreocupação na espera. eu acho que estou a perder a memória. tu sabes, o meu cancro na cabeça está bem, estável, mas não morreu, está cá e agora eu estou sempre a esquecer-me de tudo. abracei-a, contei-lhe umas coisas engraçadas para a descontrarir e depois fomos sentar as aflições para um banco improvável em madeia mesmo em cima da praia. pedi-lhe pormenores do que lhe acontece e do que diz o médico, inventei umas coisas que podem justificar as ausências na sua rotina, e acalmei-a para irmos almoçar coisinhas boas de que gosta muito e falarmos de outras coisas de há muito tempo para tentar perceber a sua memória de longa duração. mas agora estarei talvez com o coração um pouco mais apertado, aquele bicho que lhe está na cabeça, e que antes lhe afectava a decisão, está a acordar em outra frente depois da quimioterapia e da radioterapia, é muito inteligente. e eu só quero que esta minha amiga desde pequenina consiga sobreviver para viver e para eu não poder contar.
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