não me lembro de ficar doente, há anos que não sabia o que é espirar quinhentas vezes seguidas e ficar com os olhos e o nariz a pingar a ponto de lamber o ranho que se faz fininho mesmo a pedir a minha língua. e de me sentir febril como se tivesse uma lareira em cada poro da pele e um chuveiro ao mesmo tempo e em cada um também. de maneira que ter saído a correr em pijaminha de cetim valeu-me um anti-histamínico e mais uma pastilha grande que me deixam, um e outro, com a boca seca e zonza. encharco-me de vicks, nem sei porquê a não ser porque gosto do cheiro, meto na palma dos pés como se faz aos bebés, e pronto: estou quilhadita. hoje custou-me trabalhar, moleza muita, sono a esbordar, eles dizem que é da pastilhinha pequena, e está mais do que comprovado que tudo o que me afecta os nervos se traduz - e se expressa - em maleita no meu corpo. que bicho raro que eu sou, socorro, às tantas será por isso que o Viço talvez pense assim: chega-te para lá, cabritinha do monte, tu sai-me da fronte. agora deu-me vontade de rir, Olinda, sua trenga.
sexta-feira, 31 de março de 2023
quarta-feira, 29 de março de 2023
o meu Afonso estava assustado, ansioso, em pré-surto, e lá fui eu de repente em pijama depois de a mãe dele me ligar para ficar mais descansada, pois claro, ela fica descansada - eu é que não. mas agora já o alimentei e mimei e preparei-lhe uma caminha fresca no sofá. não fazia ideia de que, como que a correr para as nove da noite, o centro do porto era tão povoado, tanta gente como se o dia estivesse - não a acabar - a começar, tanta agiitação, tanta copofonia, tanto frenesim. agora estou estafada e preocupada. mas calma. hoje celebrei-me o dia inteiro, passei parte do dia a olhar o mar e depois almocei coisas boas que me apeteceram: uma francesinha aviária com perú e um crepe abelhudo com mel e nozes, duas bombas portanto, que bem me souberam com vento e cheiro de ar com sal e leveza na cabeça. talvez fosse mesmo preciso para mais tarde ter de andar a correr esbaforida a ir buscar o meu afonso perto do abismo. quem me dera que a voz de mel com gengibre me pudesse tranquilizar agora, (pensava entre um semáforo irritante e uma passadeira gasta com as luzes dos calcantes que teimam em passar.) porque o Afonso vive em constante esquina com um abismo qualquer que o atormenta. o meu Afonso. dorme bem, querido Afonso.
terça-feira, 28 de março de 2023
o antónio pode ser muito bom fisioterapeuta mas já o pus a andar, pois claro, não gostei: ah, e tal, noto-a muito tensa, um dia dstes temos de tratar disso, faço-.lhe uma massagem nos ombros e nas costas, franzi a testa e ladrei-lhe, era o que faltava, o que ele queria era que me despisse, só meto um braço de fora e é um pau, como estava a dizer, ele é que não viu - então estive a pensar e fui num instantinho levar a prescrição à clínica e na próxima semana já terei consulta com a fisiatra e depois começo a terapia. pronto, assunto arumado e ainda poupo uns guitos porque ele não aceita nem o meu seguro e nem o sns. e depois da electromiografia de hoje, credo, que tortura, choques eléctricos e picas ao centrímetro, a médica queridinha foi-me confidenciando o resumé dos resultados: pode ficar tranquila, não é neuropatia, então apanhei a energia toda e pus toda a gente no sítio por onde fui passando: o outro que me tratou por tu como se me conhecesse de algum lado até tremeu quando he tirei o pio; e a directora clínica da medicina do trabalho também engoliu em seco quando lhe pedi uma carta em que referia por escrito o que me disse via oral: suspeito que seja doença profissional. e a chefe? a chefe trocou os olhinhos quando eu lhe disse: sabes, eu vou recomeçar a fisioterapia mais amiúde aqui ao lado e não posso sair prejudicada no salário e nem vou trabalhar horas extras para compensar tempos: se eu estou doente do braço é porque me esforcei demais estes anos todos e nem sempre com a cadeira, a mesa e o rato adequados. portanto, eu vou sair e entrar quando precisar como se estivesse a trabalhar. e pronto, que dia cheio de energia o meu. ah, e mais uma coisinha: o exame que estava previsto custar €100, ficou por €10: o meu seguro é mesmo excelente, adoro-o.
domingo, 26 de março de 2023
hoje o meu mano faz anos. quarenta e três. temos todos diferença de três anos. sinceramente não sei por que razão a minha mãe se deixou engravidar tanto e, pelo meio, tantos abortos fez. pois, claro, depois com tantas raspagens manhosas apanhou um bicho, ninguém me tira da ideia que veio tudo daí, depois ficou doente e bazou. para que quis tantos filhos? assim que nasce um filho o anterior paga a factura dos afectos que ficam por dar, já se sabe, quando não se reune todas as condições necessárias para ter um magote de filhos. mas, como estava a dizer, hoje o meu mano faz anos, comecei a ser maãe dele quando ele tinha três aninhos, será sempre o menino que eu defendia de tudo e de todos, nunca lhe toquei com um dedo para o castigar. bem visto, nunca castiguei alguém - antes fui sempre castigada. ainda agora, lá em casa, a conversa daquelas gentes que vão continuar sem me conhecerem, vai dar sempre ao mesmo: vais ficar para tia?, olhares de riso e maldade, daqui a nada estás velha e cheia de peles e com as mamas caídas. sorrio e ignoro. mas também fico triste.
sábado, 25 de março de 2023
como não me apaixonar também pelo caracol do seu nariz portento, apanhar-lhe a curvinha e escorregar para a eira parda, a primeira, depois andar em pontas na direitinha e deixar-me cair toda atordoada na parda segunda farta. e escalar. escalar pelas beiras para depois dar saltinhos de alegria na trunfa e furar em um fio de prumo forte e resistente para patinar na testa de cera. parar um pedacinho para escrever uma coisinha grande e sentar-me nas almofadas, uma de cada vez, antes de me dobrar nos olhos e entrar por lá adentro como se não houvesse amanhã. porque nunca há amanhã; porque nunca há hoje a não ser dentro de mim. cala-te sua tonta, estás condenada a ficar deste lado assim.
sexta-feira, 24 de março de 2023
não percebo. não percebo como é que não se pode adorar a chuva que me dá um acordar em concerto, pang-peng-ping-pong-pung, tudo cruzado, desliza nas caleiras e faz sapateado nas beiras das varandas enquanto o vento a faz rodar e estalar nos chãos. depois brinca às castanholas, olé, enquanto os pássaros inauguram uma aurora ainda escurinha ao desafio quando o dom galo está prestes a ser o maestro da estreia. depois é ver os carros que adormecem calados todos lavadinhos como se ficassem com lustro eterno enquanto, em filinhas, a água faz um carreiro que lambe a calçada e se entranha na terra que diz, como quem diz, que parece que vai durar um dia inteiro.
quinta-feira, 23 de março de 2023
hoje foi a vez da cascata. apaixonei-me pela cascata lá no spa da piscina depois de tanto nadar e correr - a cascata derramou-se nos meus ombros e retirou-me algum cansaço as vezes que eu lhe pedi, carregando apenas no botão. agora estou sempre a pensar nela e amanhã muito cedo já vou estar com ela outra vez. porque queremos estar com o que nos dá prazer e bem estar. ouve, é só uma cascata, eu sei, mas agora aquela cascata - precisamente por ser só uma cascata e não podendo ser apenas minha - está lá para ser partilhada também comigo. um dia ainda hei-de ter uma cascata só para mim. porque nunca nada é só para mim.
quarta-feira, 22 de março de 2023
dormi mesmo mal, agitadíssima, como se lhe pressentisse - e pressinto- a luta: sai daqui, era o que faltava sair da ilha da fantasia e viver a fazer de conta, queres roubar-me de mim e desse medo que salta de pele em pele sendo sempre o mesmo, toma, toma, toma, colher de pau em riste, vais apanhar, colher de pau que bate em mim, deixa estar que já te preparo um caldinho de afastamento instantâneo, isto é dar um passo à frente e dez atrás, já sabes como se faz, como eu faço, eu que te desdenho com toda a minha couraça, consciência que da adolescência não passa, quero lá saber como estás e como ficas. o que interessa é eu saber meter o anzol, espalhar na multidão, pescar ares que encham o meu balão que levita. recuso-me a ser.
fazes bem, fazes bem, penso exaurida, continua como queres, não te chegues à frente nem a cara dês. mas podias envergonhar-te um bocadinho, de quando em vez. digo eu.
terça-feira, 21 de março de 2023
às vezes a cara é bem pior do que com a careta e eu disse-lhe: ó António se eu o vir na rua nem o reconhecerei, quer dizer, anda a tratar-me tão bem os tendões e as articulações e eu só vejo os seus olhos. tem razão, se quiser eu passo a fazer a terapia sem máscara, ao mesmo tempo que a tira, !ai!, socorro, não, não é preciso, disse-lhe sem o alarido mental, faz muito bem em manter a regra de protecção. é estranho, do nariz até ao queixo nada faz pandã com os olhos e nem com a sua simpatia e profissionalismo. é como o dicionário, às vezes é perfeitamente descombinado na fonética e na oralidade das palavras apesar de ser o rei porque se um verbo que se escreve, porque se conjuga secretamente, de uma forma que não faz pandã com o outro imediatamente anterior, então sabe bem ignorar a forma correcta e abraçar a que condiz porque fica bem dizer em alta voz e em textos literários, que eu considero literários, e não me interessa que seja considerado erro pelos outros. em casos assim o dicionário sorri para mim, pisca-me o olho, comunga da minha percepção e nem se zanga, pois claro que não, o dicionário ama-me com paixão desde que eu era pequeninha e foi-me um presente de natal, o mais desejado presente de natal. no sentido inverso, ouve-se desde sempre dizer que azul com verde é para escarrar na parede. ora eu adoro conjugá-los e quanto mais fortes, melhor: fazem pandã só para mim. é assim.
domingo, 19 de março de 2023
chorei durante horas diante do espelho. quis ver a dor a inchar e a derramar-se, não fico feia a chorar, e falei alto nunca fiz mal a alguém, depois calei-me e gritei sem dizer uma palavra, tal e qual como fazem os bebés. quis ver como é sentir que me estão a enterrar viva, foi isso. a cara de uma viva que é como se estivesse morta, aos mortos é a quem não podemos dar palavras nem sorrisos nem beijos, nem opiniões; aos mortos é que devotamos a esperança de um dia podermos vê-los e abraçá-los. então hoje eu chorei como uma morta deve chorar, gostava muito de saber se é assim como eu fiz. mas deve ser melhor porque os mortos têm a certeza de que não podem ir a nenhum lugar e os vivos que passam a saber que não saem do lugar ficam, então, pior do que os mortos. passou muito tempo e eu acho que as lágrimas cansaram-se de mim. acabaram. acabaram e eu fiquei cansada, lembrei-me do braço que também decidiu não me querer porque parece que quer sair de mim. agora os dias que tens para descansar parecem agulhas, moça, são um desgaste e uma arreliação, dessa maneira vais ficar doente, já não és uma menina e serás para sempre uma menina. aceita e conforma-te: nunca serás um tesouro a não ser de ti própria nisso de quereres amor sem medida. vai ser desmedida para o raio que te parta se é que já partida não estarás.
terça-feira, 14 de março de 2023
de repente, chamam-me os dedos, bomba que não aguento, atiro-a na folha, esta, alva casta guardada no tempo, como se estivesse só, sossega, descansa, meu menino, meu homem, minha predilecta pessoa, meu homem, meu menino, meu oásis de um deserto achado, minha lágrima, meu sorriso, meu rebento, meu menino, meu homem de rosa, meu portento, !ai!, aqui não posso chorar e nunca posso eu te embalar, te abraçar, te amar, meu menino, meu homem, minha pessoa predilecta, meu beijo por beijar, lambo o sal que me pinga, sal que vem do mar de dentro, com o doce se mistura, meu menino, meu homem, meu rebento, impotente me estou, no meu peito rebento, do teu sorriso que procuro e onde me sento, me oriento, da tua força de lições me alimento, a voz rastreio no navegar, do teu verso, que é verso, a prosa é alento, nunca me farás mal, meu bem, meu arraial de fresco vento, meu raio que parte o sol, porque maior e melhor, não invento, vejo, vejo, vejo, sinto, sinto, sinto, meu gigante desfragmento.
domingo, 5 de março de 2023
sábado, 4 de março de 2023
por que razão é tão importante para si responder uma a uma, sempre a mesma merda, todos os dias, como um ritual imprescindível de sobrevivência? por que quer coleccionar mulheres indiferenciadas de raça e de cor, de idade e de calor, e que precisam de atenção à moda de sermão tranquilo, uma espécie de flirt altruísta que, pelos vistos, tão bem ao ego lhe faz? altruísmo e ego não rimam, digo eu, a mim que oferece silêncio e confusão e ausência e indiferença e raiva. sim, raiva, porque nós só não queremos o que nos faz mal, o que não é bom, o que não nos seduz querer falar, querer estar. porque só rejeitamos o que é mau. e todos os dias me diz, sem dizer, que eu sou algo terrivelmente mau. isto é uma tristeza, um desgosto: é alegre e contente, talvez feliz, cumprindo-se no tão mau que eu sou que me diz.
pode parecer impossível mas descobri que a lixívia está a curar a minha alergia nas mãos. as pomadas não fizeram qualquer efeito e quando mexo na lixívia a pele reage positivamente. acreditas mais em mim do que eu própria, dizem-me muitas vezes, e eu não sei de onde vem esta coisa que sinto: é como se eu conseguisse ver as pessoas como se elas fossem, e são-me, de vidro transparente por mais que as camadas que vestem as tapem, as encubram. e depois, há sempre uma luta entre aquilo que eu vejo e aquilo que se vê. mas nunca digo o que eu vejo, só quando me apaixono - o que é uma raridade tratando-se de pessoas. não sendo pessoas, apaixono-me muitas vezes, talvez quase todos os dias. de maneira que há mais de uma década que me apaixonei por uma pessoa e aconteceu uma coisa ainda mais incrível: eu vi-a sem a conseguir ver e aquilo que eu vi, por mais voltas que a vida dê, é o que eu continuo a ver. mas não podemos acreditar mais nas pessoas do que elas próprias porque senão elas começam a fazer-nos mal por não se quererem tão bem quanto nós a queremos. e não nos quererem bem faz-nos mal e não haverá lixívia que nos salve.
quarta-feira, 1 de março de 2023
é, vai-te convencendo, um bocadinho todos os dias, um pedacinho de cada vez, aceitar é a única solução, chora muito porque há-de passar, aceitar que tens de continuar a não aceitar aquilo que sabes que não mereces, cada vez mais com mais força: está tudo apenas em ti, não há nada para esperar do cão: ele só quer, porque é o que escolhe e prefere, então que com elas fique, tão alegre e contente gatão, as conas na multidão.