dez menos cinco e não enconto o número da porta. ligo para o número fixo de onde me ligaram a marcar a entrevista - que não corresponde ao indicativo da localidade. atendem. descrevem o prédio como sendo salmão e com uma caixa de areia em frente - continuo a andar aos papéis porque o prédio é, efectivamente, castanho e na frente há um círculo em terra batida no meio do jardim. dez horas. dez e dez. dez e um quarto. dez e vinte. dez e vinte e cinco. chega um homem alto, moreno, remelado, e com aspecto de escarradela a pedal saído de um audi tt (é mesmo verdade que as primeiras impressões raramente nos enganam). passa por mim - que estou mesmo à porta -, mede-me ao centrímetro, e não dá, nem com o cu nem com a boca, sinal de vida. abre, com a tranquilidade de um governante roto, a porta e os estores. eu: continuo fora a aguardar mais uns segundos e a observá-lo. os nervos, os meus, começam a indiciar agitação. acalmo-os e decido entrar. bom dia, a chuva tem destas coisas e gera atrasos - não é? o meu nome é Olinda e tenho uma entrevista agendada hoje para as dez horas. sem me cumprimentar e me acolher, manda-me aguardar e dá-me uma ficha para a mão. pergunto-lhe para que serve a ficha e porque não me dá uma explicação para o atraso. diz-me que a ficha é para eu preencher e que a entrevista está marcada para as onze menos vinte e cinco. digo-lhe que não, que foi agendada para as dez. sem olhar para mim, diz-me que devo estar a mentir porque no pc não há essa indicação. peço-lhe para esclarecer junto da senhora que me ligou. diz-me que não precisa porque sabe que o erro foi meu. pergunto-lhe o nome e não me diz. pergunto-lhe qual é exactamente a função e não me diz. pergunto-lhe onde fica o escritório de onde me marcaram a entrevista e não me diz. chamo-lhe atrasado mental - não pela deficiência em si mas pela limitação óbvia de não poder estar atrás de um balcão a lidar com pessoas. pergunto-lhe novamente o nome e, já sem aquela tranquilidade de fedor a mofo, diz que me diz na condição de eu lhe dizer para que quero o seu nome. rasgo a ficha bem à frente dele e digo-lhe que sou muito bem educada e faço, por isso, questão de saber o nome a quem quero mandar foder. e digo-lhe: vá-se foder Ricardo. e saio, nervos lisos, orgulhosa - como sempre - por não me deixar corromper perante as vicissitudes da vida.
estará ainda por nascer quem julgue que me faz abdicar, o meu tesouro, dos meus valores e das linhas com que me coso.