sexta-feira, 19 de maio de 2023

 lembro-me amiúde das conversas que tinha com a dona N, nas horas que passávamos juntas. não tinhamos segredos nem tabus, como só pode ser quando se quer conversar, e uma vez pedi-le que me contasse do seu desejo pelo marido. ó menina Olinda, eu só me apaixonei uma vez na vida, não casei por amor, incrédula eu desatei com as minhas perguntas vadias, eu não fiquei com o rapaz por quem me apaixonei porque o meu pai me proibiu, ele não era de família rica como a minha, o meu marido conheci cá no porto, num café na baixa e em seis meses casámo-nos, eu tinha de casar, desejo? quando eu percebi o que ele estava a fazer comecei a chorar e disse-lhe tira-me daqui essa porcaria, pumpumpum a martelar em mim, e depois? depois habituei-me, ele punha-se em cima de mim e já estava, e com os anos? com os anos depois ele deixou de querer martelar e eu fiquei contente, porquê? ora porque já estava farta, o meu marido era um homem muito íntegro, era magistrado, se falava das coisas dele? claro que não, aquilo enfadava-me, o que gostava nele? olhe, ele era bem parecido e muito respeitado, se alguma vez pensei em outro homem? lembro-me do rapaz por quem me apaixonei como se fosse hoje mas isso já passou, a paixão não leva a nada e o amor também não, tem é de se ter cabeça para uma casa funcionar e sermos alguém nesta vida, ria-me estupefacta, mas então nunca admirou nem apreciou nem se babou pelo seu marido, nunca sentiu tesão, menina Olinda, nem en nova nem em velha, mas a idade só faz crescer aquilo que mais admiramos naquele que queremos porque a idade é a acumulação em intensidade das características que mais nos atraem no outro, dona N, assim como as coisas negativas se exacerbam também, a  admiração só pode ser infinitamente crescida, aquela erecção invisível, dona N, eu sei que não é assim como eu, menina Olinda, anda aí toda melada por esse homem, como é que ele se chama, aqueles nomes esquisitos, e eu lá lhe dizia e acrescentava, mas olhe que isto é um segredo muito grande, eu bem sei e há-de morrer comigo. e morreu. estar demente é estar morta, não em si mesma, com os outros. e não, não sinto remorsos por nunca mais a ter ido ver porque as saudades que sinto não são desta dona N - são da outra que nunca gostou de sexo porque nunca esteve apaixonada pelo marido que, por sua vez, foi um grande incompetente na cama: só sabia martelar, e em seco, como ela disse.

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