percebo nada de carros, quer dizer, só passo a perceber aquele que vem para as minhas mãos e para os meus pés, nessa altura sim, começo a estudá-lo, reconhecer-lhe o feitio ao milímetro e depois quando algo anormal detecto é porque algo está mal, não falho. mas como estava a dizer, percebo nada de carros. e se o homem me estiver a enganar, ando a pensar, se ontem quando o conduzi percebi a embraiagem muito dura é porque alguma coisa poderá não estar bem. ademais, se veio do norte da europa, do frio e do gelo, poderá, por debaixo, ter ferrugem a apodrecer - isto porque também detectei vestígios de ferrugem em algum metal irrelevante como os bracinhos do limpa vidros e o que está por detrás das jantes novas e a brilhar. de maneira que é muito bom ter amigos: hoje fui almoçar lá a casa e amanhã o marido da minha amiga, que também é meu amigo, vai comigo fazer umas prospecções e simulações e também vamos preparar uma visita deste carro que vi ontem ao mecânico. talvez até não esteja fora de questão comprar um novo a estrear se estiver ao alcance do meu salário. vamos ver. vou ver. uma coisa eu sei: estou a tentar não pensar no nódulo na próstata do meu pai que o exame revelou na sexta e que tem de ir para estudo. não dei importância alguma quando li em alta voz para ele, disse-lhe que é normal, protejo-o de uma dor que ainda não sei se existe mas que já me dói. então amanhã também vou pedir ao Doutor Rodrigues Guedes de Carvalho, que o segue há muitos anos, para vê-lo e desconstruir o exame. e se for algo maligno? o meu pai não vai lidar muito bem com a inibição natural de fazer sexo apesar de estar quase nos oitenta. nem quero pensar no que será a vida se isso acontecer. deixa-te rir, deixa-te rir com leveza, rapariga, antes que o mundo estremeça.
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