sentia-me uma personagem dos livros do Eça quando passávamos a temporada de verão no Douro, na Régua, em Tões, em uma das casas senhoriais da Tia, nunca percebi o grau de parentesco durante essa altura mas também não interessava por conta de ela ser uma senhora já sexagenária e divertidíssima, Filomena. a cama que escolhi para dormir desde a primeira vez tinha o colchão em palha e uma boneca das que eu gostava, as únicas, de trapos; os móveis faziam aqueles barulhos típicos do antigo e as paredes eram bordadas a tinta naqueles tectos imensamente altos e estampados em relevo. a sala de jantar, até hoje nunca mais vi uma sala assim, era tal e qual um salão de dança, cheio de janelas e de luz, chão de madeira, tábuas corridas, onde imaginava sempre ter sido pisado por moças de vestidos compridos e folhados que escondiam corpetes sensuais a apertarem nas costas com tiras de cetim. na cave, o local mais fresquinho e escuro da casa, eu não gostava muito de estar - cheirava ao vinho guardado e às pipas gordas que se misturavam com o azedo do mofo e da noite fingida. mas quando ia, fazia histórias de amores escondidos e desfeitos ali mesmo. depois cansava-me e queria ir fazer renda, aprender-lhe o pormenor e captar-lhe a paciência, antes de voar nos patins e sonhar de bicicleta e da apanha dos tremoços. ao domingo a Tia nunca me obrigou a ir à missa, nem ela nem o pai, - percebeu logo que eu gostava mesmo era de ficar no adro, sentada no cruzeiro a apreciar as poucas dezenas do povo da terra aperaltados com as melhores roupas: as mulheres com os pés a gritarem por socorro pelos sapatos, sempre novos, apertados e os homens, ar esganado, pinguços de suor, pelas camisas abotoadas até ao caroço. aquele Deus devia merecer tanto sacrifício, pensava eu. e entretanto, hora feliz, o cheiro do assado a lenha no prelo já me chamava para eu ir aprender na alquimia da cozinha com a Tia. era bom.