o criador apresentava, finalmente
ao mundo, a nova gama de vaselina que, dia após dia, durante sete longos anos,
tinha preparado. um pouco mais de óleo de rícino aqui, um cheirinho de petróleo
acolá até a parafina líquida estar no ponto: não num ponto qualquer mas no
ponto de exclamação das gentes perante a novidade que vinha aí.
(vir é sempre bom e a espera do
vir pode, de facto, surpreender)
começou por testar o seu bebé
(aquilo que fazemos com amor é sempre um rebento em branco) junto de vários
estratos sociais. visitou muitas, muitas, casas e foi oferecendo amostras para,
na semana seguinte, recolher informação sobre a textura e a utilidade que lhe
dariam. numa casa, foi recebido por um senhor abastado que tinha descoberto uma
utilização medicinal – aplicava a vaselina nos joelhos e cotovelos dos filhos
sempre que se esmurravam e estava bastante satisfeito com a sua suavidade; na
segunda casa tinham-na usado, na mecânica, para lubrificar os rolamentos da
bicicleta e do aparador da relva; numa terceira casa, um operário, barba
desfeita e hálito de intestinos de pato, disse-lhe que lhe tinha dado um uso
meramente sexual: besuntava, todas as noites, a maçaneta da porta do seu quarto
para os filhos não a conseguirem abrir.
entre todas as residências que visitou,
esta última foi realmente a que mais prendeu a sua atenção – não pela
utilização em si mas pela tomada de consciência de que, sem dúvida alguma, é a
inconsciência de cada um que acarreta tantas finalidades diferentes.
ninguém, porém, tal como ele, se
lembrou de simplesmente não experimentar, não sentir a textura, não dar
qualquer utilidade à vaselina; ninguém, tal como ele, se lembrou de,
simplesmente, lhe responder que se excluiu do teste sem, daquela parte sem
parte; da parte de não fazer, de não usar – o que o deixava a encher-se, pelo
vazio seu e só seu, de júbilo.
a parte sem era, foi, sem dúvida,
aquela em que, por enchimento, se excluiu. excluiu-se sempre de tudo o que o
enchia, do que o tocava – e tocava-se, isso sim. tocava-se para se orgulhar do
sem que era, do que com tudo sem tudo era. e abandonou o teste porque a única
experiência que afinal de contas lhe interessava era a de reconhecer, em si, a
exclusividade, a consciência da inconsciência. pensava, por todo si, que por
melhor que fosse a sua criação nunca iria de encontro a si.
(ouvia, amiúde, de si, para si, a
graçola do “e si sou boa comómilho porque não me queres?” e ria, ria, perdido
numa nuvem balofa que lhe dava sempre nota cem)
por mais que a criação fosse boa
como o milho, não se cansava de gritar que não era galinha – detestaria, aliás,
ser a típica galinha que vive a olhar os céus e a pedir a deus que lhe dê outro
sexo porque o único que tem (e a utilidade que lhe dá) enfada-o. por mais que a
criação fosse maravilhosa, não a queria, recusava-se a partilhá-la com a sua
outra parte que não a de criador – consigo mas sem si, sempre sem si,
percorreria os caminhos e até os atalhos da ciência, do laboratório, das ruas
com casas com gentes lá dentro, como num ciclo – não vicioso – virtuoso que o
ajudava, mais e mais, a reduzir-se, a desfalcar-se de si em honra de si.
**
passaram dez anos, entretanto, e
o criador explora o sem si no expoente máximo: bate na porta das casas das
gentes, sem mostrar alegria ou entusiasmo, e aguarda, sem agitação e
curiosidade, que adivinhem, sem consciência, ao que vai, qual o produto que
quer testar e o que pretende saber. pretende, agora, sem fim e sem cabo, dar um
novo significado à palavra sentir.
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