um espelho costuma ter a
capacidade de reflectir a luz e, igualmente, tudo que se apresenta na sua face.
foi sempre assim: até nascer o josué.
face que a face revelas
nos dias com sol e com
luz
mostras as caras do
mundo
que sem mistério seduz
assim é o que sempre
foi
o ver o que já lá está
aguardemos quem lá vem
o mundo verdadeiramente
espelhar
vai nascer o josué
e o mundo vai mudar
a mãe do espelho
rainha e menina da
aldeia
curiosa não havia igual
reinava nos sonhos do
rio
crescia por fora
crescia por dentro
mas não crescia, enfim
vitória não sabia
que longe dos sonhos do
rio
estava já perto do fim
vitória, com apenas treze anos
de idade, tinha uma curiosidade enorme em fazer o que cresceu a ver na
televisão: homens e mulheres enroscados, gemendo, rindo e que depois se
vestiam. aos catorze, a menina percebeu que esquecera alguma coisa (que não via
nos filmes) e pariu. tudo começou naquela tarde quente de verão quando
decidiram dar uma escapadela ao riacho da aldeia para refrescarem todos, cerca
de nove, a pele suada do jogo do “mata” e também a vontade, calada pelo que
as pessoas que passavam na rua impunham, de descoberta.
no seu corpo começavam a
desenhar-se formas: adivinhava-se, com timidez, a nítida diferença da cintura
com a anca; as mamas (ainda em forma de concha) ameaçavam saltar e os
humores sortidos, porém sem caprichos
de mulher artista, já se faziam sentir desde que o seu primeiro sangue
desceu aos onze anos -altura em que igualmente, e pela primeira vez, nadou no
rio.
vitória detestava flores e
árvores e ninguém percebia muito bem o porquê, até porque foi vezes sem
conta apanhada sentada a comer terra, de este desprezo pela natureza viva.
ao invés, deliciava-se – horas a fio – a olhar as pedras e a sobrepô-las até
desabarem. certa vez enquanto se lambuzava com a terra do quintal, foi
surpreendida por um sardão. destemida e determinada, fez questão de o esmagar:
primeiro a cabeça, depois o resto e, por último, arrancou-lhe, para expor ao
sol até ficarem tesos, os olhos.
as brincadeiras nas margens do
rio aumentaram com a chegada da caravana dos ciganos à aldeia, assim como a sua
curiosidade acerca de corpos nus em movimento. de tal forma que vitória
esperava que os pais se deitassem para espreitar e esperar que se embrulhassem,
despidos. foi nesta altura que conheceu o
né e, depois de constatar que para ele isso não era novidade, planeou imitar as
acrobacias que via na televisão e pelo buraco da fechadura.
cheio de cor e de
estofo
com mãos e olhos de
fogo
levava a vida a brincar
saltando de terra em
terra
saltando de menina em
menina
não sabendo que nesta
aldeia
o seu mundo vinha acabar
nesse verão quente chegaram à
aldeia sete carroças ciganas para uma temporada de habilidades artísticas de
canto e de dança. entre os mais jovens: aquele que viria a ser um dos criadores
de josué (entenda-se criador involuntário e sem qualquer pretensão), o né das
tochas por tão agilmente brincar com o fogo.
completara dezassete anos e fora
a maior festa do inverno da última aldeia por onde as caravanas passaram. de
olhos brilhantes e sorriso encoberto habituara-se, desde cedo, a seduzir as
meninas das aldeias (que se encantavam com as suas habilidades) que sempre os
acolhiam com entusiasmo e alegria. durante o tempo em que permaneciam nas
aldeias, todas as noites, decoravam o largo das igrejas com fitas e flores;
cada membro do grupo cantava ou dançava algo diferente a cada dia vestindo
roupas retalhadas que a avó, a mais velha, fazia.
corpulento e desajeitado ensaiava durante a manhã para, durante a tarde, juntar-se às brincadeiras no
rio. quando conheceu vitória percebeu o quanto ela gostava de ouvir as suas
histórias que eram, na sua grande maioria, aumentadas - quer na duração dos episódios, quer nos
pormenores relatados. era o entusiasmo de ela que o fazia exagerar e, por essa
razão, achava que aumentar histórias assim não era pecado: era rebuçado. por falar em rebuçado, as guloseimas
eram a perdição do né. todos os dias teimava em saboreá-las até ficar com dor
de barriga. certa vez comeu tantos rebuçados que lhe soltou o intestino e não
pode brincar com o fogo no espectáculo da noite: serviu-lhe de lição - não fossem as
tochas a sua vida, as meninas das suas mãos. descobriu, com vitória, que
adorava que lhe mexessem na cabeça: ela catava-lhe as lêndeas e os piolhos, senhorios os seus cabelos baços e desgrenhados, e riam muito quando olhavam
para o frasco de vidro para onde os sacudiam. até encher, diziam.
não lhe era indiferente a
quentura das mamas de vitória a desabrochar nas suas costas – cresceu a saber
que quando se tem fome: come-se e quando se sente vontade: fode-se.
a criação do espelho
o fogo e o vento unidos
sem saberem bem porquê
brincaram um pouco
juntos
com o rio
à sua mercê
como estava a dizer, naquela
tarde juntaram-se todos para um banho no riacho e brincadeiras nas margens.
desde o dia em que se viram pela primeira vez, vitória e né, sentiram permissão
para se explorarem: enquanto ele relatava as passagens por outras aldeias, ela
aproveitava para catá-lo das lêndeas e dos piolhos que faziam já parte da
risota de ambos. decidiram, com os olhos - apenas
com os olhos -, afastar-se dos outros e
atravessaram o riacho calcando as pedras, muito devagar, musguentas e
brincalhonas que aguardavam impacientes um pequeno deslize para se poderem
deslocar. era fascinante o poder que a água exercia em vitória: por breves
instantes o mundo parava ali. fixava, séria e atenta, os olhos na água.
seguiam-se as mãos e os pés. deliciava-se a ver o seu reflexo e dizia sempre
que não era ela (o que deixava né confuso e atrapalhado e sem saber o que dizer).
ocorria-lhe apenas chapinhá-la e meter lá a cabeça para depois poder
sacudi-la e gozar com o afogamento dos seus inquilinos do quinto andar.
chegados à outra margem, vitória
(que conhecia o rio como né conhecia o sabor dos rebuçados) assumiu a dianteira
e dirigiu a caminhada para uma clareira onde achou que poderiam ficar longe de
eventuais olhares curiosos e, desta feita, ensaiar o que viria a seguir. ali
ficaram, horas a fio, a aguardar a escuridão da noite e a solidão do rio.
Contou - sem pudor e com frenesim - as aventuras vadias em frente à televisão
e de olho na fechadura da porta do quarto dos seus pais. né, apesar de atento
e empolgado, não sabia bem do que falava aquela rapariga: televisão e portas
eram palavras que não cabiam nas caravanas nem na sua vida sem paredes. ainda
assim ouviu e imaginou e percebeu que a vontade chegava.
o que mais instigava a
curiosidade de vitória eram os barulhos que dizia ouvir quando, escondida,
apreciava as acrobacias. descreveu-os como estranhos e despropositados e, para
né perceber bem o que queria dizer, comparou-os aos emitidos pelos macacos se
aprendessem as vogais. né tinha apenas pensamentos mudos de quem nunca antes tinha parado para pensar nisso.
despiram-se.
vitória estava deliciada a olhar minuciosamente tudo no corpo de né que, por sua vez, comparava as formas de
ela a frutos: as mamas lembravam-lhe pequenos pêssegos de bico arrebitado e
escuro; o sexo – um figo aberto ainda por amadurecer. foi quando lhe ocorreu
perguntar a idade daquele corpo: o mais jovem, e ainda não sabia, o último, que provaria durante toda a sua curta vida.
os olhos da menina-água fugiram
para o sexo, já erecto, do jovem cigano questionando-o se seria aquela cobra, curta e grossa, a entrar
nela. e ele ria, ria tanto que a bicha caía. depois vitória lá pedia para
mexer, e ver o que se escondia por debaixo da densa penugem, e a bicha voltava
a crescer. sussurrando, meia trémula, que
estava a fazer-se tarde e que precisavam fazer o que os tinha levado até ali,
vitória dirigiu-se para o rio onde, em passos lentos, entrou. seguiu-se o
rapaz, excitado apenas pela excitação de ali estar e não, isso é certo, pelo cheiro e pelo (quase) sabor do cesto da fruta fresca.
estavam ambos nus, ambos na água
que lhes cobria a cintura, quando, inesperada e docemente, vitória canta, ao
mesmo tempo que né com brusquidão a penetra, assim:
reflexo meu
reflexo teu
nananananana
onde queria eu chegar
e agora que aqui
estou
vieste para me buscar
reflexo meu
reflexo teu
nananananana
apenas uns instantes e né gemia, as vogais de macaco como dizia vitória, baixinho, baixinho e depois alto, alto
até libertar um berro – que já não era de prazer – de aflição. o esperma que
jorrava não era, como estava habituado, espesso e branco leitoso. era verde e
em quantidade nunca antes percebida: o rio tinha-se transformado num prado a
correr. vitória, que tinha fechado os olhos quando entraram no rio, com o
susto do berro, que já não era de macaco mas antes de leão, abriu os olhos e, igualmente assustada,
correu para a margem puxando o ciganinho né pelo braço.
não conseguiram falar no rio
verde mas prometeram, um ao outro, guardar o episódio com eles até morrerem e
esquecerem o que tinham visto naquela noite em que a lua nem sequer estava cheia e
manhosa.
no chão (ele) e na cama (ela):
adormeceram.
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