
Quem são, afinal, os trabalhólatras?
Os trabalhadores compulsivos pela altura de férias, por exemplo, ficam desnorteados e sem saber o que fazer (o que é o lazer?) simplesmente porque não estão a trabalhar. Mas comecemos pelo princípio. Há vinte anos rompia a globalização, a competitividade roncava entre as nações e as empresas, assim como a necessidade das pessoas demonstrarem – a si próprios e a outros – valor, o máximo de valor. É impossível não referir aqui que, na minha modesta opinião, não é o trabalho que dignifica o Homem mas o Homem que dignifica o trabalho. Salvo raríssimas excepções, o trabalho não passa de uma caixinha de processos minuciosamente controlados e monitorizados, com imputs e outputs - num espaço e num tempo -, devidamente expectáveis. E quando, nessa caixinha, aparece a alegria ou o amor ou o prazer, já não estamos a falar de trabalho. (ainda estou a aguardar que me expliquem em que dimensão é que a alegria, o amor, o prazer são remunerados através de uma folha de salários ou de um recibo verde)
O trabalho faz parte de uma rede social, mesmo enquanto actividade individual, absolutamente necessária apenas para se ter dinheiro, carcanhol, guito, que, por sua vez, alimenta a rede social. e é só isso, e é bom que tenha consciência disso - não é o trabalho que o faz feliz nem o dignifica. Desmonte um dia de trabalho e saque-lhe a tal alegria, o tal amor, o tal prazer (se está difícil, passe para uma semana ou depois para um mês) e verifique lá se nos momentos em que sentiu o trio de que falo, ou alguma parte isolada, não estava a agir enquanto gente ao invés de agente social. É verdade, convença-se: apanhar a carrinha de caixa aberta às cinco da manhã para chegar à obra às nove, debaixo de sol e de chuva, não dignifica ninguém; nem passar um dia inteiro sentado numa cadeira - ainda que ergonómica -, por si só, em frente ao pc; nem prescrever um medicamento, ao ser mais uma ajuda naquela viagem de sonho, sem saber porque verdadeiramente o paciente sofre; nem dar uma aula sem aquele brilho de sabedoria que marca o outro lado. Nem nada. o trabalho não serve para nada quando não passa de um tudo, porque não é só se deixar de respirar que morre: se deixar de trabalhar também. Perdas e ganhos contabilizados, os trabalhadores compulsivos ganham doenças e tristeza perdendo tudo e todos à sua volta. Adiante.
Conhece trabalhadores compulsivos? Conhece alguém assim? Pois, eu também. Vamos chamar-lhe Filipa. A Filipa é casada e tem um filho de três anos. Estão de férias e a cada dia de férias que passa a Filipa está com um ar mais cansado. Estranho? Não: ela pertence ao clã dos trabalhadores compulsivos. Explico. A vida dela é uma verdadeira rotina instalada tendo como ponto de referência o trabalho. Então o que fazer perante tempo livre? Stresse. A Filipa entra em stresse perante a possibilidade de não ter de trabalhar e de não ter um ritmo alucinante e, curiosamente, sofre das mesmas angústias e cansaços como se a trabalhar estivesse: dorme pouco e mal, faz refeições fugazes e com pouco valor nutritivo, é incapaz de se libertar do telemóvel e sente um medo gigante de falhar com o filho e com o marido. Resumindo: a Filipa está de férias e vive impaciente, ansiosa, stressada, intolerante e alheada (confira aqui e aqui) daquelas coisas que dão alegria à vida.
Se tem cura? Tem, claro – bastará que as Filipas, os trabalhadores compulsivos do mundo, queiram ser gente para dignificarem a vida. E o trabalho.
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