pois claro que li a entrevista do Paulo Nozolino, e se não tivesse lido leria com certeza depois de ir espreitar ao Rugar, fiquei a pensar no quanto adoro a verticalidade tanto quanto ele. porém, ele adora-a na arte e eu adoro-a na vida: eis a grande e abismal diferença, ele quer que eu veja o que ele viu e eu na arte quero ver o que me apetecer. na vida eu só quero ver o que é e dentro do que é o mais possível, talvez lhe chamasse ele, se me conhecesse, por que raios haveria ele de querer conhecer-me, rio-me, como estava a dizer, talvez ele lhe chamasse uma verticalidade horizontal. depois penso no jardim, no banco do jardim onde diz que se pode distrair, pensar é na igreja. também aqui neste ponto compreendi o que quer dizer, compreendo-o perfeitamente, mas discordo em absoluto. em uma igreja o que não falta são focos de distracção, camandro, para a minha distracção. é o altar imaculado e talhado com tantas curvas e flores frescas, os cálices estilizados e as velas com a pose de depois de ir derretendo; são os dourados recortadinhos e os corpos nus e gelados detalhadamente esculpidos e com esgares sofridos como se estivessem com prisão de ventre; são os anjinhos roliços e de cabelos encaracolados escolhidos para lá estarem como que fossem chibos de Deus a assegurarem-se que Lilith não aparece; são os tectos pintados com histórias da história que um dia alguém contou, uma espécie de conto a que sempre foram talvez acrescentando um ponto.
no jardim, não há distracção: há o ar como se eu pagasse direitos sobre o ar e o ar fosse meu, o ar entra em conluio com o cérebro e fazem um lanche, é uma cestinha de pensar em uma liteira, que interessa quem passa, não interessa quem se senta ou anda a pastar: o jardim é para pensar e para sentir também porque é no ar que respiramos, um jardim pode ser um sofá ou uma cama, um jardim pode ser dentro de casa também, como estava a dizer, porque é no ar que respiramos, no ar a que temos direito como se pagássemos direitos, que sabemos o que valemos em nossa lucidez. nas igrejas distraio-me com a arte horizontal e nos jardins deleito-me com a verticalidade, a tal verticalidade horizontal que diria o Nazolino se me conhecesse, rio-me, a verticalidade que me é viver. e sim, juntos, profano e sagrado de mãos dadas sempre a olharem para mim.
esqueci-me, entretanto, daquilo que me lembro sempre quando vejo uma igreja: na minha imaginação há sempre um porteiro muito pálido e carrancudo vestido de preto e com meia dúzia de peleiros na moleira. é medieval. ele olha para mim e percebe logo tudo, o corcunda, também é corcunda - e coxo, antes que não me lembre -, pergunta-me em jeito de categórica afirmação: não tem cartão, não entra. sorrio, sou simpática, faço-lhe uma finta à Pelé, e desvio-me sempre para o jardim mesmo antes de ele sequer ousar pensar que poderia eu querer entrar.