passo o meu dedo indicador no ar
olhos cerrados
cerrados de tão abertos
como se Ro estivesse a contornar
de cima a baixo
e de baixo para cima
de dentro para fora
e de fora para dentro
o meu dedo sorri
e dança sem tento
à minha volta respiram pessoas revoltadas e eu agora percebo-as melhor, não é que antes não as percebesse mas não as depurava, não centralizava a questão da mesma maneira. agora o ambiente melhorou porque as entendo melhor, não é que antes não as entendesse mas consegui perdoar todo o mal que me fizeram porque se calhar também não centralizavam a questão e não me depuravam. é melhor pensar assim. mais: é melhor sentir assim. a minha não revolta acalma a revolta delas e no ar a revolta vai-se dissipando, dá lugar a outras coisas, que se fale de coisas bonitas em vez do filho do patrão e da filha da putice de ainda gostar mais de dinheiro do que outro qualquer, de que é o verdadeiro galã javardinho mealheiro à custa de salários baixíssimos e de pessoas que têm de ser supermultifuncionais. agora também eu descanso mais nunca deixando de assegurar o que me compete mas sem aquele esforço desmedido. não há sobresforço, ficou decidido porque decidi, a humilhação viria daí se continuasse a desdobrar-me por tão pouco. assim não há humilhação, é justo, por cada hora de trabalho a baixíssimo custo - outra hora de descanso para compensar, fica tudo equilibrado, o tempo é precioso, vejo e leio e reflicto e aprecio as coisas do mundo fora daquele mundo. acrescento-me valor.
o meu pai tem setenta e oito anos e namorava, ou namora, há dezanove com uma senhora. não é que eu não goste dela, é mais não gostar da forma como às vezes ela o trata, considero que o meu pai tem de ser tratado como um rei, mas isso interessa nada porque quem tem de gostar é ele e não eu. adiante. há uns meses que entraram em ruptura e o meu pai começou, há cerca de um mês, a ir ao baile sozinho e conheceu uma outra senhora que escreveu num papel o nome e o telefone porque ficou encantada com ele. esta senhora, com setenta anos e que tinha tido uma relação de muitos anos com um homem casado supostamente até conhecer o meu pai, aparenta ser muito meiga e, de acordo com as mensagens que lhe mandava, que eu tinha de traduzir porque o meu pai tem a sensibilidade de um camião TIR, tratava-o como um rei. mas o meu pai andava triste, não andava a achar normal, e hoje na hora do almoço perguntei-lhe o que se passava. então contou-me que andava a tentar não voltar para a namorada mas que estava a sofrer. então mas se chegaste à conclusão de que gostas dela é com ela que tens de estar. e a T? o que se passa com a T? queres mesmo que te conte?claro, se queres a minha opinião, tens de me contar. então, enervado, disse-me que com a T perde todo o tesão porque ela se comporta de uma maneira que não gosta, quer dizer, gosta mas não gosta. e explicou-me tudo, tive de me conter para não me rir porque parece que estava a ver a cena, e acalmei-o: pai, se não te sentes confortável e perdes o tesão não vale a pena, tens de gostar de estar com ela. pois, ela é simpática e trata-me bem mas na cama causa-me angústia e estou sempre morto por vir embora. eu adivinhei mais ou menos o que se poderia estar a passar e disse-lhe: sabes, eu acho que os homens casados têm outras mulheres para fazerem com elas aquilo que acham que fazer com as mulheres é porco e imoral e talvez a T se tenha habituado e esteja convencida que isso é carinho em si mesmo. pois, vês como tu chegaste lá. ouve, mas isso poderia não te incomodar. não sendo o caso não tens de fazer sacrifícios, tens de ir ter com ela e dizer-lhe que ainda gostas da A e é com quela que queres ficar, só isso.
depois contou-me todos os pormenores e notei que ficou tranquilo - como se precisasse da minha aprovação para acabar com o seu mal estar. é incrível como a sexualidade da terceira idade é exactamente igual à das outras idades - o senso comum é que desconhece.
noites assim, em que até uma gota de orvalho a cair numa folhinha me acorda, não deveriam existir, não é justo, acumulo cansaço e depois ando a semana inteira a recuperar, às tantas tenho de ir ao celeiro comprar as tais gotas de extracto de plantas que sabem a bagaço que me puseram na língua no outro dia. a minha cabeça parece de cristal, já a conheço, quando alguma coisa a perturba é assim, não pára, parece um carrossel, movimento circular. ontem de tarde dormi bem e depois fiz muitas coisas com as mãos para descansá-la mas não foi suficiente inventar o bolo com creme de queijo e laranja nem os rojões no forno com ninhos de ovos cor de rosa nem a mancha da banheira que consegui eliminar a cantarolar. não foi suficiente a beleza das flores e das meninas que voam cheiinhas de cores. não foi sufuciente ler e reler e apreciar as coisas que vêm de lá, daquele que me ilumina ao sol e ao luar. talvez a minha cabeça esteja apenas triste, tenho de lhe dar tempo para se recompor, talvez tenha de se despir junto do coração e fazerem juntos uma receita de acabar com a inquitação, um feitiço bom.
estar cercada de maluquinhos pode ser uma experiência incrível: tenho a certeza de que a minha saúde mental está excelente. consigo detectar a maldade, o desinteresse, a indiferença, o desapego, a falta de sedução - e de admiração, portanto -, a vergonha talvez, eu acho que as pessoas escondem o que sentem por alguém quando sentem vergonha desse sentir e desse alguém, portanto, enfim, tudo aquilo que é grande, enorme, gigantesco, perante os meus olhos que refinadamente depuram a pequenez.
quero abundância, quero abundância. abundância.
vejo o nome e atendo. começo a tremer perante a sua voz trémula e indefesa, tia preciso de ficar a dormir contigo esta noite, não me sinto bem. digo-lhe que sim sem mostrar o meu pânico. desligo. começo a ter um ataque, estava a entregar o carro da empresa no mecânico. fico a chorar a aguardar que me venham buscar. depois chego e meto-me na casa de banho, saio e caio de joelhos no cão, deito-me e molho-me, mal consigo respirar só de pensar no que pode acontecer. nada vai acontecer, ele está controlado, só pressentiu que poderia haver um descontrolo com a mudança de estação e da medicação e ligou-te, ouço-me sem me convencer, está tudo bem. sinto meterem-me umas gotas que sabem a bagaço na língua para me acalmar, de olhos fechados deixo-me acalmar e fico calma. não sei como vou conseguir ficar bem, quando chegar, daqui a pouco, ele também já chegou, depois vou preparar o jantar e o sofá e depois quero dormir mas talvez não consiga, há o medo, o medo que ele faça alguma coisa semelhante ao que fazia antes, o medo que tente atirar-se da varanda ou que saia de noite. só quero conseguir dormir e que amanhã ele esteja bem e que vá embora. eu só quero que ele fique bem e que vá embora, embora. porque eu tenho medo da caixa preta com o meu coração lá dentro, o meu sobrinho é uma caixa preta, quando está assim, e tem o meu coração lá dentro. eu tenho medo que o meu coração se desfaça, quero dormir e guardar o meu coração, quero dormir e guardar o meu coração.
ó rapariga, tu não vês que nada é para ti e que tudo é para todos? tudo não, porque a parte em que dá a cara nem sequer podes ver, és uma trenga, és ridícula, por que és má, tão má, para mim?, não sou má, sou fria e crua, quero que chores pelo que não há, quero que sintas plenamente o hoje, tantos hojes, como se não houvesse, e não há, amanhã, gargalhada da cuca, nada é para ti, tudo é para todos, nada é para ti, tudo é para todos. cala-te, por favor, cala-te, sua intermitência dura, não me massacres.
acordei a pensar numa coisa. e sei por que me lembrei: ando à procura de ideias para ajudar o meu cunhado, o meu sobrinho, a minha amiga, todos os que me ligam como se ue fosse a mamã ou a vóvó. quando há um punhado de anos tive a epifania, mais uma entre tantas falhadas, de criar uma ideia de ir cozinhar a casa das pessoas, pensei, adoro cozinhar e as gentes cada vez menos querem ter trabalho e pedem comidas entregues em casa, nasceu a bucca d'avó, adorei, mas nunca tive sequer um cliente, continuei a cozinhar em casa de amigas e familiares por gosto e por querer alimentar-lhes o coração e nunca ganhei um tostão. mas como estava a dizer, quando há um punhado de anos tive essa epifania que falhou, mais uma entre tantas, não sabia que anos muito à frente me traria serventia: a de me permitir espreitar o Rugar. pois, o que é que eu fiz? como nestas coisas de tecnologia sou uma nódoa irreversível, mudei o nome para dois nomes de flores, mudei porque talvez o jeitoso se lembrasse da bucca, eu mostrei-lhe na altura como mostrava tudo, e pronto. quilhei-me sem me quilhar, não consegui entrar, ele é fino, mas consigo apenas espreitar. agora dá-me riso, muito, porque nem sequer sei mexer com aquilo, queria regressar à bucca, mexo e remexo, e são ambos. interessa nada. o importante é que afinal serviu para alguma coisinha. lailailai
tinha acabado de adormecer quando o cilindro estourou. toda a gente deveria passar pela experiência de, pelo menos uma vez na vida, estar perante um rebentamento assim: ficar com a calma e a paciência necessárias a assistir com absoluta impotência ao esvaziamento de um depósito enorme, antigo. porque entretanto a luz também se quilhou. então era a água e a escuridão, em uníssono, a testar-me. estou a esquecer-me do meu pai que estava a tentar arranjar justificações absurdas para a pequena tragédia e também a sofrer pela privação do futebol.
o resultado foi uma inundação e muitas horas a conseguir apanhar a água com alguns centímetros de altura. não me enervei, não me doem os braços. só estou ainda mais convencida de que sou um monumento de paciência, não sei se é bom ou mau, só sei que sou. a melhor parte foi deitar-me encharcada, não liguei a ventoínha e percebi que o silêncio já me fazia falta.
estou com contade me de chamar a rapariga com o cilindro de pérola, sou uma obra de arte por ser, sou, miss elegia, a melhor experiência do mundo bruto e agressivo que me quer - em vão - converter.
pois claro que li a entrevista do Paulo Nozolino, e se não tivesse lido leria com certeza depois de ir espreitar ao Rugar, fiquei a pensar no quanto adoro a verticalidade tanto quanto ele. porém, ele adora-a na arte e eu adoro-a na vida: eis a grande e abismal diferença, ele quer que eu veja o que ele viu e eu na arte quero ver o que me apetecer. na vida eu só quero ver o que é e dentro do que é o mais possível, talvez lhe chamasse ele, se me conhecesse, por que raios haveria ele de querer conhecer-me, rio-me, como estava a dizer, talvez ele lhe chamasse uma verticalidade horizontal. depois penso no jardim, no banco do jardim onde diz que se pode distrair, pensar é na igreja. também aqui neste ponto compreendi o que quer dizer, compreendo-o perfeitamente, mas discordo em absoluto. em uma igreja o que não falta são focos de distracção, camandro, para a minha distracção. é o altar imaculado e talhado com tantas curvas e flores frescas, os cálices estilizados e as velas com a pose de depois de ir derretendo; são os dourados recortadinhos e os corpos nus e gelados detalhadamente esculpidos e com esgares sofridos como se estivessem com prisão de ventre; são os anjinhos roliços e de cabelos encaracolados escolhidos para lá estarem como que fossem chibos de Deus a assegurarem-se que Lilith não aparece; são os tectos pintados com histórias da história que um dia alguém contou, uma espécie de conto a que sempre foram talvez acrescentando um ponto.
no jardim, não há distracção: há o ar como se eu pagasse direitos sobre o ar e o ar fosse meu, o ar entra em conluio com o cérebro e fazem um lanche, é uma cestinha de pensar em uma liteira, que interessa quem passa, não interessa quem se senta ou anda a pastar: o jardim é para pensar e para sentir também porque é no ar que respiramos, um jardim pode ser um sofá ou uma cama, um jardim pode ser dentro de casa também, como estava a dizer, porque é no ar que respiramos, no ar a que temos direito como se pagássemos direitos, que sabemos o que valemos em nossa lucidez. nas igrejas distraio-me com a arte horizontal e nos jardins deleito-me com a verticalidade, a tal verticalidade horizontal que diria o Nazolino se me conhecesse, rio-me, a verticalidade que me é viver. e sim, juntos, profano e sagrado de mãos dadas sempre a olharem para mim.
esqueci-me, entretanto, daquilo que me lembro sempre quando vejo uma igreja: na minha imaginação há sempre um porteiro muito pálido e carrancudo vestido de preto e com meia dúzia de peleiros na moleira. é medieval. ele olha para mim e percebe logo tudo, o corcunda, também é corcunda - e coxo, antes que não me lembre -, pergunta-me em jeito de categórica afirmação: não tem cartão, não entra. sorrio, sou simpática, faço-lhe uma finta à Pelé, e desvio-me sempre para o jardim mesmo antes de ele sequer ousar pensar que poderia eu querer entrar.
não quero saber de mais nada, nunca mais quero saber de nada, quero que o mundo acabe agora, quilhe-se tudo, que não nasça o dia nem o sol se atreva a acordar. quero tudo noite, tudo quieto, quero adormecer até ao fim do mundo, quero chorar até ganhar papos antes de adormecer para ficar cansada e não ter hipótese de me levantar. já está.
nem sequer aprovam os meus comentários, ficam horas e horas como se não existissem, da outra vez nem chegou a aparecer, não entendo, sou impotente fazendo acontecer, é injusto, o mundo é uma sequência de injustiças feitas e também do que não se faz, essa gente injusta que me deixa ralada, se tem jeito serem comentadores a decidirem o que eu tenho de dizer e quando, castradores, já só queria metê-los em água a escaldar. depois ficava a ver a pele a desfazer-se e a água a ficar cor de rosa e aí chamavam por mim, Olinda, por favor, atire-me água fria, gritava um, acuda-me, gritava outra, com bocas gretadas de tão secas pelo pânico que lhes comia os resquícios de himidade. depois eu fazia uma magia, voltava com a cena atrás para que eles vissem o futuro próximo e aí eles diziam-me: prometemos aprovar os seus comentários imediatamente no minuto após os ter submetido. e também prometemos reclamar com a direcção sobre isso de os assinantes só conseguirem ter acesso aos textos quinhentos dias depois de sairem em papel. e então eu sorriria e diria: muito bem, assim está bem, agora peguem lá chiclas e rebuçados. evitavam-se tragédias e a preocupação de depois eu ter de pensar no que faria com as águas cor de rosa cheiinhas de peles de víboras. talvez fizesse um caldo bem passado para dar de beber a outras gentes pestilentas, tudo se apriveita.
não existes, Olinda, não existes, és uma invenção. conforma-te.
é indescritível a alegria que sinto só de lhe ler o nome. as minhas células hão-de, com certeza, rodopiar ou dançar, se calhar misturam-se com o sangue a ferver e fazem um batido quente até arder. talvez seja assim, não vejo outra maneira de ser. porque eu cheguei a correr para vir contar o que me aconteceu e depois a intuição desviou-me para lá, é sempre assim, quando vejo - e vejo muitas vezes ao dia tem dias - não há e depois em algum intervalo de mim lá está. antes era mais certo, quando ia a correr à bomba cuscar o papel, mas depois que arranjei forma de poder comentar não faz sentido a correria, pois claro. mas como estava a dizer, eu cheguei a correr para contar aqui e depois fui para lá e fiquei alagada de alegria e quase esqueci a porcaria.
depois de almoçar, fui descansar a pança da canjinha e dos filetes e dos grelos para a beira do muro que dá para a areia bem de frente para o mar, fiquei ali a pensar quando, de repente, sinto uma mão no meu braço. pode-me dar um cigarro, disse-me, não, respondi-lhe, e para me pedir um cigarro não precisa de me tocar. tire a mão. mas eu estou a ver um maço de cigarros, sim, eu tenho mas não quero dar, largue-me. tirou a mão e aproximou-se e disse-me que não me queria fazer mal mas estava quase a vir-se. viro a cabeça e vejo a mão dentro do bolso das calças a mover-se freneticamente, imediatamente me levanto, chamo-lhe badalhoco e entro no carro para me retirar sem medo. não senti medo mas nojo. porque ele não sabe que eu não tenho medo, e não sabe da minha força, pensei a mil, não sabe que consigo pegar em móveis sozinha e em vinte quilos em cada braço a brincar. nem eu sei de onde vem tanta força e, portanto, ou me retirava imediatamente ou partia-o todo. e depois vim a correr para contar, só queria contar do nojo, esfregar o meu braço até sair a pele onde ficou a mão daquele traste.
de maneira que bastou eu ler o seu nome, e depois o resto, para me tranquilizar e esperar para contar aqui ao vento.
beijo-o profusamente antes de dormir. e depois o sono gosta tanto da véspera que está a espiar que a agarra e continuamos a beijá-lo. devo ficar ciumenta porque empurro o sono e quero o beijo só para mim, ah pois. entretanto amanhece, amanheço com os raios do reijo a rourar-me toda, ouro de luz. arrasto-o comigo para a privada e deixo
que o reijo secretamente
me arranhe mansinho os cantinhos
é o beijo guardador de mim
reijo meu
reijo sim
é muito muito raro usar secador no cabelo, tão raro como usar guarda-chuva, ora a chuva não precisa de ser guardada mas sim fruída, e por essa razão, essa razão de não usar o segundo é que tenho o primeiro lá numa gaveta no meu local de trabalho. pode acontecer chegar como quando se sai do duche, acontece imensas vezes, e ter de ir a uma reunião de seguida. quase sempre também ignoro o protocolo e uso amiúde a mesma desculpa: acabei de ficar encharcada com um aguaceiro que me apanhou desprevenida, minto, e minto porque não me apetece explicar que adoro sentir a chuva a dar-me na cabeça e depois as pontas dos cabelos ficam fôfas quando secam e a cheirar intensamente ao meu perfume. como estava a dizer, lá está o secador na gaveta e hoje usei-o: a colega chegou molhada até aos ossos, meias e calças a gelá-la. então eu chamei-a, sequei-lhe as meias e depois as calças, entretanto o secador cansou-se e parou e dei-lhe um tempo. voltei à carga e acabei por deixar a menina confortável. não que mereça, às vezes também é cabra, mas mereço eu sentir-me bem: não conseguiria concentrar-me sabendo que ela poderia ficar doente. afinal sempre tens utilidade, disse eu ao secador em pensamento, hoje dei-te mais andamento do que em uma vida inteira, isto mesmo antes de lhe enrolar o fio já espreguiçado e de o arrecadar até quando a chuva quiser fazer mais uma vítima.
se há parte de que gosto nada é aquela em que sou uma espécie de esponja, ou cogumelo, que absorve o que faz mal e bem aos outros como se a mim fizesse também. e faz. quando é o bem, ainda bem, quando é o mal toca a afectar o meu rico sono como se de repente o sono me obrigasse a acordar dele, abanão, talvez para me impedir de ter pesadelos, não sei, visto e escutado assim até que pode ser um sono amigo, acorda-me por prevenção. agora fiquei a pensar no que será pior: a insónia, fico a ouvir o arfar da ventoínha na imensidão da noite, ou o pesadelo que é aquela ilusão de sono reparado visto que quando acordamos parecemos um burro cansado. só sei que não é justo, fico arreliada, ando o dia todo cansada, não queria ser uma esponja ou um cogumelo. queria ter um vidro de protecção que me velasse o meu rico soninho para o meu rico soninho me cobrir com toda a sua atenção. e se assim fosse, como assim tem de ser e como às vezes é, então eu podia sonhar todos os dias com o meu amor todo em riste e descansar como quem deliciosamente só assiste com os olhos a brilhar, estrelas contentes, e o sorriso a rasgar prados e montes.
existem dias que marcam, marcam todos, uns mais do que outros. hoje sofri um bocadinho com calma enquanto esperei para saber, pensamentos mil, até lá chegar. depois cheguei e novamente tive de esperar, sabe que os homens só conseguem fazer uma coisa de cada vez, simpaticamente me disse, disse como quem diz para me calar enquando enchia a tela do computador com palavras, procedimento a que os médicos estão obrigados - agora talvez muito mais do que a ouvir os pacientes - e lá esperei a segurar as minhas dúvidas e questões. sorriu: não há nada de maléfico no seu fígado e um rol de palavras que explicavam tudo e dissipavam a minha preocupação, pensamentos mil que se fizeram palavras e palavras que se desdobraram em calmantes. ouvi tudo e liguei o meu tradutor automático: a bolinha milimétrica é apenas um montinho de células oriundas dos vasos sanguíneos que se mitraram ali. e lá saí toda feliz decidida a celebrar: escolhi uma comida que nunca tinha comido e também uma sombrinha tranquila para beber aquela hora pequenina.
sem o programa interno não consigo trabalhar, a actualização pegou em todos os computadores menos no meu. de maneira que tenho passado os dias a ler, ver e a ouvir o que me apetece, coisas do mundo, e também a apreciar a assistência remota que consigo explicar em poucas palavras: olinda ping pang. dá-me riso, ninguém consegue descobrir a falha, não temos informático, lá na empresa externa que presta auxílio remoto. mas hoje pela fresca vai lá alguém antes de eu sair. aguarda-me mais uma sessão de ping pang olinda.
absorta da realidade laboral, o tempo tem voado. os dias têm passado ainda mais depressa. para onde irão os dias que voam? imagino então uma garafinha bonita, vidro recortado, uma garrafinha só minha, que vai gurdando tudo, e onde tudo cabe, tudo o que se não vê. depois lá dentro dela há-de haver uma alquimia qualquer, uma magia que desconheço. é a garrafinha de vidro recortado apanhadora dos dias que voam.
sim, eu percebo o Nabokov perfeitamente naquilo de ligar - ligo eu - os genitais à definição das pessoas, as pessoas como borboletas mas só algumas. andava eu a ler e a ver coisas de borboletas quando uma epifania me voou: fui a correr ler a posologia do medicamento novo, a substituir o anterior, que a médica com nome de fruta me receitou para a diabetes e lá está tudo explicadinho, tudo da frequência de infecções na oligina e no oliríneo . pensava eu que eram bichos que me picavam as pudendas e afinal o bicho é o medicamento, quer dizer, andei toda rebentada, depois fiz tratamento e passou e agora, acudam, chegou outra vez a comichão e o ardor. é o puto do medicamento o bicho que me ataca as pudendas, as pudendas que também me definem. agora estou meia confusa, não sei se aguardo, se páro imediatamente de tomar. uma coisa sei: não estou para isto, era o que faltava, nunca antes tive coisas destas e isto não me pode arreliar mais. está dito.
comecei a trabalhar há uma semana e já parece um ano, o cansaço de um ano de ausência: ausência de quem se preocupa, de quem seduz, de quem quer que a empresa cresça. porque eu sou a que se preocupa, a que seduz e a que quer que a empresa cresça, sou sozinha, nem patrão nem colegas sucumbem a esta redundância, sou cansada de ser sozinha a preocupar-me e a seduzir e a fazer crescer. de outra maneira não me sei ser mas também não quero a ausência. o que aconteceria se também eu me deixasse morrer?
e se eu não souber tocar, tocá-lo, penso vezes sem fim, será que vai gostar de mim?, insegurança em bicos de pés, cala-te já, ouço-me no repente, porque tocar é a extensão do sentir, olha, é um monte, um monte?, sim, percebeste muito bem, em cima do monte estás mais perto do céu,
tocar quem se ama é o monte e é o céu
,
o ronte e o réu
e sossego, desassossego que se acalma
,
com um pé na insegurança
e outro na segura dança
,
sagrada-profana
, a dança que é do corpo e é da alma
acordei e pensei de imediato em algo que considero muito interessante como se tivesse acabado de ler, tinha acabado de acordar, e se dormir também for - e é - ler?, penso depois, como estava a dizer, pensei em uma coisa simples. quem se mete a jogar comigo, perde sempre. e perde por uma razão que me é óbvia: não sei jogar. depois pensei, mesmo agora, agora que já recomecei nas tormentas do dia, dos dias, que essa é a principal razão pela qual as pessoas odeiam, me odeiam, perdem sempre comigo. sorrio. o que mais posso fazer senão fazê-las, sem fazer, perder?
essa é que é essa, ando a sonhar com o romem há anos a fio e todos os dias, de lá para cá, apanhava um bocadinho de terra sem ninguém saber e sem, no entanto, criar expectativas de transformar a terra em uma montanha. não sei se tenho coração de sábio mas sei que nunca se maculou, tão perfeito é o coração - o meu e o dos outros -, o coração que nasce pequeninho, imagino-o a nascer como os pintos: a casca a estalar, depois uma arranhadela aqui e outra acolá e a cabecita de fora a respirar e já está. como estava a dizer, o meu coração maculado andou sempre a bater, às vezes tolinho e outras a trote, sei lá eu, tantos dias e tantas horas sem contar e sem esperar esperando, sem fé e a acreditar - só em segredo a dançar. e se quando chegamos a um lugar é nesse lugar que estamos e não queremos estar? sim, pode acontecer o romem ter chegado ao lugar que não quer por não ser, sequer demasiado, bom. porque o lugar que fica no meio, espalhado e misturado e enraizado do coração, no meio como quem diz nele todo, pelo meu falo, é também o lugar que se espalha pelos rins e pelos pulmões, pelo cérebro e pelas frutas sumarentas do prazer, por mim falo, e sendo assim tudo se torna em um só e no verbo acontecer a querer rasgar a pele, mesmo a mais sensível. e como estava a dizer, esse lugar de lugares sentidos é de madeira-pedra e de cristal e poderá haver quem não o queira, afinal. acordo de hora em hora, às vezes, espreito o céu acompanhada pelos mosquitos atrevidolas, tonta és - ouço a roz -, a ver se a lua me manda um sinal.
sem nunca ter saído do lugar, viajei intensamente por dentro, todo o movimento é por dentro na espera e na esperança de também por fora ser. passo anos e meses e dias a ficar no mesmo lugar que embalo ao segundo como se fosse um karma por ser, por ser porque desde sempre fui eu a escolher sem escolher como me quero ser, sou e já está, nada me pode fazer deixar de ficar neste lugar encantado de céu e de inferno, primavera e inverno, lugar ansioso e sereno de outono por vir. porvir.
porque a forma como os outros nos tratam é o karma deles e a forma como nós reagimos e nos sentimos é o nosso karma. e eu, só de o sentir e de o pensar, enrolo as pontas dos dedos dos pés, jeito mansinho de tensão, só quero o rarma por dentro e por fora e em mim. o rarma sempre é a minha maior atenção, tensão e atensão, invento, atensão como com o prefixo de portento portanto.
o meu tocar. pego em um copo para beber, desliza pela minha mão e depois o limão parto em duas metades para espremer umas gotas para a delícia do puré e aperto-o até se desfazer; a esfregona, espremo-a e parto-lhe o pau sem dar conta; preciso de arrastar o fogão pesado e já está, nem preciso de esforço. e a máquina, !ai! a minha máquina de costura que me deu nos nervos, fio que parte na agulha vezes sem parar, o fio está tenso, menina, é a tua tensão a passar. verifico os botões, troco as linhas, experimento outra e outra vez, parto as agulhas, !mais três!, desligo-me, desligo-lhe a luz e a corrente.
porque tocar é sempre sobre e como sentimos, não há segredos. tocar é uma forma de expressão, o corpo inteiro a falar e a reagir perante o que estamos a tocar. tocar.
a propósito deste pedante, também tenho lá onde trabalho uma c, c de coleguita que diz que tem um milhão de seguidores no instagram. até aqui tudo bem, as pessoas gostam de seguir tendências de cinismo e isso é lá com elas. no outro dia, estava eu a comer os meus tomates com bolachas de aveia, ao lanche, e reparei que ficou a ougar as bolachas, reparei porque ficou colada nelas. ofereci-lhe uma das três que tinha para comer ao que me responde: nem pensar, não posso, mas não podes porquê, está bem, vou aceitar desde que me prometas que não contas aos meus seguidores que estou a sair da linha. a minha vontade era mesmo dizer-lhe que é feia, mesmo feia, feia pela forma como vive e feia de rosto, parece um reflexo de cara nas bolas de natal, mesmo com a maquilhagem que usa para melhorar, e obrigá-la a vomitar a bolacha que lhe dei. ri-me. depois lembrei-me de outra coisa. como já é a terceira vez que chumba para ter a carta de condução, apeteceu-me dizer-lhe que deveria dizer ao milhão que a segue que a tendência é andar a pé por incapacidade cognitiva de perceber, segundo relatou, que não se pode encostar à berma na via de cintura interna mesmo que seja o avaliador a mandar. essa candida, candida por eu achar giro atribuir-lhe o nome do fungo dos genitais, é a mesma que faz do namorado um criado, da avó com quem vive e a criou um empecilho e uma das que quer saber, porque quer, que perfume uso e qual o milagre que meto na pele para ter a sua como a minha - mal ela sabe que não gasto um cêntimo nesses cremes. ora esta influenciadora, assim se considera, é a maior. mas só se for a maior lá da cadeirinha da sua sala da sua casa quando se dedica a ser uma pedante e com sotaque de tia de cascais a exibir-se e a mentir para um milhão. no outo dia, num outro dia, apanhei-a a ir à confeitaria buscar um lanche misto e com chouriço, são enormes, e a comer às escondidas. fiz de conta que não vi, não a envergonhei, só me ri.
entretanto o meu dedo em riste para ela foi na bolacha que lhe dei cheiinha de boa vontade. se foi.
como é que um casal que se ame poderá fazer sexo com outras pessoas? como é que alguém que ama outro alguém consegue fazer sexo com outro alguém que não é o alguém amado? ora nesta minha cabeça que muito estimo, isso não se coaduna com amor nunca e em tempo algum, dá-me nos nervos que usem a palavra amor no meio da porcaria, dá-me logo gana de lançar uma bomba e explodir com quem fala em amor assim. como se o amor permitisse desejar outro que não o amado; como se o amor permitisse tocar outro que não o amado; como se o amor permitisse pensar em outro que não no amado.
sim e sim e sim. no amor somos sempre quatro além dos dois: desejamo-nos e, por isso, também desejamos o amado; tocamo-nos e, por isso, também queremos tocar o amado; pensamo-nos e, por isso, também pensamos o amado. amamo-nos e por isso também o conseguimos amar.
é, portanto, uma conta fácil de fazer: no amor somos sempre quatro perante o três de eu+ele+nós que resulta em unidade amorosa. e quem me vier com histórias de nojo, nojo por quererem meter o amor em outros números que não os que considero, leva com bombas para desaparecer em pedacinhos ao estilo iogurte de morango. está dito.
quando o cabrão do médico do hospital me fez a consulta para pedir a ressonância magnética ao fígado que a médica querida com nome de fruta vermelha pediu, pediu porque está com receio que a diabetes possa ter provocado a bolinha milimétrica que lá aparece, a médica que nunca antes me receitou qualquer medicamento porque nunca antes estive doente, como estava a dizer, o cabrão do médico armado em engatatão esqueceu-se de solicitar anestesia para mim depois de me ter perguntado se aguentaria trinta e cinco minutos fechada no tal caixão psicadélico e eu ter dito que achava que não, que não conseguiria. como se esqueceu - ou fez de propósito depois de eu lhe chamar ignorante por conta de me perguntar se o meu pai não era diabético por ser obeso, o meu pai é e sempre foi elegantíssimo -, e estou ansiosa para despachar este assunto da bolinha milimétrica, lá terei de ficar acordada e a sonhar. se vir que não consigo, peço que me deixem sair e está resolvido.
o sns deu-me uma médica fantástica, adoro-a. também porque tem nome de fruta vermelha, sorrio. como passei uma vida inteira sem fármacos, agora quer ver se a repentina diabetes me está a fazer estragos e então pediu, pediu e logo se apressaram a satisfazer-lhe a vontade, a vontade como uma ordem, que me metessem em uma espécie de caixão psicadélico para ressonar a frequência e intensidade nuclear. amanhã bem cedo, passará pouco depois das oito e meia, serei uma camundonga, portanto. estou ralada de preocupação porque não sei ainda como vou conseguir, se não tem janelas para abrir, como vou respirar. terei de me transportar para um campo com o riacho e as flores e as borboletas que me hão-de pousar no ombro e no nariz. depois tentarei subir à árvore que pintei e com o coração bonito e brilhante nas mãos, não será fácil mas está decidido: serei uma camundonga amorosa e livre, ebriamente embriagada e feliz.
às três a comichão começou a atacar e lembrei-me do gel de aloe vera. é estranha, muito estranha, a sensação que provoca: um ardume quase insuportável durante uns minutos para dar lugar a bem estar. arrisquei. mas e o mijo? o mijo é ácido e cada vez que passa pela carninha aberta é um desespero. e como estou sempre a beber água, o calor chega-me muito antes de para todos chegar, estou sempre a arder. vou aguardar mais uns tempos, evitar ir ao hospital, e não perco a gana de apanhar o bicho que me fez mal, tirar-lhe a tosse: se for de terra vou esmagá-lo até se confundir com a madeira do chão e se for do ar vou dar-lhe a lembrança eterna da tatuagem na parede ou no tecto desse tarado insecto.
há-de ter sido um bicho tarado, penso nos intervalos, durmo sempre sem calcinhas. mas, quer dizer, também durmo sempre tapada, não consigo adormecer sem estar aconchegadinha. só pode ter sido um bicho tarado a ter andado a rabiar nas minhas pudendas durante a noite de ontem. que dia terrível, horrendo, só comichão e ardor, coço com a pontinha dos dedos apertando as carninhas frágeis ao de leve, mas como fariam as que usam garras de gel, penso nos entretantos, só não consigo soprar e as coxas a amparar as fímbrias do ar fresquinho da ventoínha foi a solução que arranjei. depois a água com o sabão não resultou, coçar, coçar, fez sangue e inchou, desespero total até me lembrar do betadine em espuma para lavar, !ai! que bom, talvez a solução tenha matado as bactérias que levo ao coçar para matar a conta da taradice do bicho que andou a rabiar. como estava a dizer, só pode ter sido um bicho. e se ele se escondeu e esta noite queria outra vez atacar? então pouco dormi, estive de sentinela: não vais pousar novamente nas minhas frutas porque estou à janela. e ri-me muito, muito, só pensava no rremédinho milagroso de acabar definitivamente com a bandida comichão: os rolhos, o rariz, a roca, as rãos, os redos e a rila. !ai! que riso
uma alface e um molho de espinafres, por favor; costoletas do cachaço e um frango do campo. a alface e o espinafre são seres vivos. a minha árvore de casa morreu ao fim, no seu fim de respirar, depois de quase duas décadas e eu sei que adorava música e que lhe mexesse ao de leve nas folhas bicudas e duras como se precisasse, e precisava, do meu amor. isto para dizer que morfar alfaces ou costoletas do cachaço tem o mesmo princípio activo: sobrevivência e satisfação. posso tanto imaginar a dor de uma alface a ser arrancada, brutalmente arrancada, à terra mãe - o seu choro, as suas raízes que se partem sem sangrar - como um porco a ser assassinado, o seu sangue a escorrer e os sons de dor em cada recanto da faca. a única diferença está na semelhança do porco comigo e será essa semelhança a ditar que serei menos assassina se comer alfaces e milho, eu olho e vejo o crescimento do milho no campo, é milho feliz quando lá está, do que se comer o porco ou o pito aos pedaços.
somos de matar para viver. somos de matar para viver.
por que raios e coriscos haveria eu de me fixar na significância das cores dos outros que, a certa altura, decifraram e publicaram? qual é a verdade absoluta desse dicionário que só a eles lhes disse respeito? ora cada cor assume, para mim, o significado que eu quero, que eu sinto. eu já disse e volto a dizer: não me moldo pelo que leio nem pelo que vejo - o que leio e o que vejo servem para reflectir e depurar e acrescentar, nem que seja acrescentar que nada acrescenta. sou cor de rosa, carago.
a censura do FB é potente, digo já, agora não me deixa carregar nos corações as vezes que eu quero, homessa, manda-me avisos a bloquear-me, avisos que dizem ah e tal demora demasiado pouco tempo, ou seja, que sou muito rápida a clicar no adorar o que adoro. cabrões querem mandar em tudo, até nos meus corações. e então agora quando eu quero meter corações até vir a mulher da fava rica, que sou eu obviamente, obrigam-me mesmo a ser lenta, explico, o rato não se lá fixa à primeira, depois aparece tem a certeza que quer sair desta página? o comentário ainda não está finalizado. o que vai acontecer é que se vão acabar os corações como comentário, quer dizer, tenho de andar acima e abaixo ao ritmo dos cabrões que ententem que sou muito rápida e que esse procedimento de alguma forma causa-lhes azia, ferimento, escaldão. que têm que ver com os meus corações e com a mestria com que lhes lanço a seta?
ide-vos foder, cangaceiros gestores do cabrão do FB.
o que vale é que aqui está a chover, essa maravilha fresquinha que me alivia a arreliação.
acordei muito cansada com vontade de chegar ao meio dia e meia, hoje, tanta vontade, passei a manhã a correr para chegar ao meio dia e meia e vir embora para casa almoçar e descansar e deixar de ver aquelas gentes até ao fim de agosto, delícia, o gosto do meio dia a gosto, poder ficar na sombrinha e escarrapachar-me a fazer coisas bonitas e a nada fazer também, nada como quem diz, nada que seja para outros, ogres são ogres, em troca de pão.
siiimmmmmmm: é uma floresta poderosa de fogo que gera floresta de fogo sendo que o amor é a floresta, árvores fortes e vulneráveis e frescas - e a paixão é o fogo que me consome num ápice, ao segundo, sem me consumir e sem me esgotar, multiplica-se, !ai!, e que as árvores e os fetos e as pinhas e a terra e as flores faz crescer até ao infinito. mas só existe um amor assim e com paixão assim, ah pois é, não é comum. é o Ramor que eu quero.
bem visto o que pode aprender comigo se sabe tanto de tudo com tanto pormenor, fico maravilhada, absorvo e esqueço dos nomes das gentes e das terras e das coisas, só faço cruzamentos com outras descobertas, penso e relaciono e descubro mais. ora ele nada pode aprender através de mim, concluo, porque não sou como é, como ele é, mar e céu: sabedoria: sem princípio nem
fim
eu só sei cuidar das tranças
e das riças cabeludas
dar banhinhos frescos
massajar ombros e as coxas cansadas
passar creminho com o nariz nos pés
preparar petiscos suculentos e esfoliar a boca com a língua
passar o dedo nos cantinhos
soprar no rabinho
premir as partes moles da orelha
costurar mantinhas para os invernos
e pintar as cores das quatro estações
os cabrões do público andam a censurar-me os comentários. ora não tem jeito algum que sejam comentadores a fazer a gestão dos comentários, o que vem a ser isto, cortam-me o pio, pois claro, eu casco-lhes e eles degolam-me. e nem adianta reclamar porque também a reclamação fica à deles mercê. e quê, vão dizer que estão de férias a lavar os colhões e as conichas no mar, e tal, que não viram, estão é a boicotar a opinião e o meu trovão. cabrões - cabras e cabrões - castrados. castrados porque castradores.
é assim, estes dois têm de ficar assim, só assim me fazem sentido por ser assim que sinto, já disse. isso deve ser por andares toda trocada de sonos e em privação. cala-te já, isso nada tem que ver com o que eu pinto, pintar não é pensar e por isso só pinto o que sinto. mas se estás tão aflita com o sono podes começar por não me atazanar ainda mais o casaço e dar-me apenas um abraço.
há muito tempo que faço enxoval de camisinhas de cetim dorminhocas. compro as que adoro, sou capaz de passar uma hora a escolher, saco-lhes as minudências dos cantinhos que às vezes são meras invenções, invenções porque penso sempre que posso fazer um corte ali e acrescentar algo acolá. depois não lhes mexo, meto-as a lavar com amaciador perfumado de flores e arrecado-as na gavetinha que é só delas a repousar como se faz com a casquinhas e com o cristal. e uso as que adoro menos e guardo religiosamente as que adoro mais como se fossem, e são, tesouros que se apertam por apertar. são pancas, menina, são pancas, cala-te já, pancadinhas de amor com calor assim só podem ser de cetim. isso sim.
menina, menina, recebeste uma encomenda dos céus
os sinos começaram a dobrar fininho
era o som do piano audaz
e lê em alta voz o pregaminho
tens de desenhar e colorir as pudendas de Zeus
e ela riu riu muito
com a satisfação intocável da epifania de como faria
e aviou de seguida em frenesim os céus
às pudendas de Zeus deu-lhe a merecida alma com penas e com cor
aspirou-lhes com a ponta dos cristais dos dedos
em cada recanto improvável
a dor
ofereceu-lhes a liberdade de viver em um ninho completo
completude libidinal de amor
quando eu era pequeninha, quando eu era pequeninha, aprendi um mantra, não sei como nem quem me ensinou, como estava a dizer, aprendi um mantra que era para cantar sempre que passasse por uma hera. e cantava. e passava, havia um monte delas nas ruas por onde costumava passar lá naquela espécie de aldeia de frente para a serra de valongo. às vezes passava descalça, adorava andar descalça na rua e será por isso que tenho pele de sapo. depois nunca mais passei por heras. até hoje. mas agora tenho a certezinha de que vou passar a passar novamente.
herinha minha herinha
diz-me sim ou não
quem passar por uma herinha
e não a cortou
do seu amor não se lembrou
acordei a chorar, no sonho estava ele e estava ela. só que ele está vivo e ela está morta, tudo se misturou, então e eu estava lá com os dois, mas ela está morta e ele está vivo. e eu, em que estado estou, perguntei-me assim que acordei, vivíssima estou com certeza ou não sentiria a vontade quase incontrolável de me ser nele e com ele mas também morta poderei estar por querer tanto encontrá-la, sentir-lhe o pêlo sedoso e abundante, beijar-lhe os olhos que falavam, ser-lhe a todo o instante. se calhar não fiz o luto dela, sim, sei que não fiz e nem vou fazer porque quero que viva, e vive, para sempre comigo. faz-me falta a sua ternura e o seu apego, não quero viver em desapego, o desapego é para quem desconhece o sentir sincero em carne viva de inverno, de primavera, de outono e de verão. apego é emoção.
passo as horas a contar os segundos para chegar, para chegar ao lugar onde está, onde pode estar, só para dizer que cheguei e estou sempre a chegar mesmo que não me saia deste lugar onde me habito, onde se habita coladinho a mim neste sentir sem fim porque fim dele em mim só se for mesmo o fim da tarde para começar na noite e recomeçar de manhã,
lalalalala,
Ramor meu,
Ramor meu,
não haverá alguém,
nem a rosa
nem a grama
nem o sol
nem a rã ou gato ou ave
tampouco fiorde, monte, rio, mar
que te Rame mais do que eu
sim. sim.
!ai! de mim
os meus olhos fecham-se e não me canso de o beijar. são beijos intermináveis, perfumados de frutas e de flores e de gengibre com mel. os beijos que lhe beijo são a invenção maior do universo: são a elegia ao meu coração que canta e que dança e que diz, como quem diz e diz, que os beijos que lhe beijo são palavras em modo feliz.
resvalo lá para longe onde tudo começou. quando fico triste resvalo para a escola primária e depois a preparatória, sinto exactamente a mesma coisa: esta é a menina que não tem mãe, não ter mãe como se fosse - e foi - o meu maior predicado; não poder viver com direito adquirido aquilo a que deveria ter direito. ter direito a ser ela a escovar-me o cabelo, a vestir-me roupa passadinha a ferro, levar-me a uma festinha de aniversário, levar-me à escola pela mão e carregar a minha mochila, dar-me um beijo e uma recomendação misturada com um sorriso; ter direito a receber reforço positivo pelos resultados excelentes das composições, ter direito a escolher a comida preferida, ter direito a brincar sem preocupações. em vez disso ganhava riças por não gostar de me pentear, ainda hoje ando com as penas encrespadas, a minha roupa nunca estava impecável nem era muito variada, tinha de ser eu a levar a irmã à escola e a preocupar-me enquanto os via brincar com o bebé no colo. depois tive de aprender a passar a ferro e a cozinhar, festinhas passei a odiar - ser a menina que não tem mãe não era o que eu queria ser, apenas o que tinha direito a ser. e agora, quando fico triste, sinto exactamente a mesma coisa, agora que sinto o amor e o desejo em um só, o amor que é bonito, o desejo que é bonito, como só me pode ser, não tenho direito a viver, sou a menina que não tem mãe e que tem de fazer tudo sozinha, é o que eu sinto quando fico profusamente triste. depois levanto-me, claro, levanto-me porque aprendi a levantar-me, a menina que não tinha mãe teve de aprender a levantar-se sozinha, levanto-me. e não adianta pensarem que me levanto porque me desviaram a atenção ou me deram algo para me entreter. eu levanto-me porque me sei levantar. como se levantar fosse o intervalo de entristecer e como se entristecer fosse um castigo.
acordei e fui espreitar a telinha que ficou a secar. experimentei algo novo, ontem, eu que desconheço técnicas e tudo me sai no momento com a ponta dos dedos: por cima das tintas de óleo, três camadas de cores diferentes para achar o tom, deitei aleatoriamente acrílico e aconteceu algo improvável - improvável no meu leque de possibilidades por não estar a pensar em possibilidade alguma, pintar não é pensar: a tela começa a adquirir um aspecto velho e enrugado como se o tempo aparecesse, e apareceu, tal e qual como se fica. a minha telinha é muito frágil, aos olhos parece que vai partir. e só eu é que a adoro, não faz mal, digo-lhe, eu valho por um universo inteirinho.
deve estar com o bonito petiz, lembro-me vagamente do seu rosto de uma vez que vi, e o petiz fez o retrato, então se está com o petiz só pode estar feliz porque o petiz é sempre um amor feliz. será que têm cuidado com a pele, penso, o sal com água e sol às vezes não dá em mel, porque a felicidade pode fazer esquecer que há o torrar sem perceber, absortos um no outro, os dois bonitos, não, hão-de usar toda a protecção, cala-te já, não sejas chata, e deixa-os a amarem-se e em verão.
e depois há o ciúme, esse bicho que sai do mato sem se ver e começa a picar, é parecido com a azia, arde e queima, expande-se desde o estômago até ao mindinho do pé, estou a explicar como é, depois também vai para a cabeça, ouve-se latejar até que pára na bomba, como se a quisesse matar, e parece que mata, o bicho que sai do mato que deve achar que é indomável mas não é. agarro nele, torço-lhe as orelhas grandes e bicudas, tiro-lhe a força, depois calco-lhe os pés até o ouvir guinchar, e faço-lhe do rabo comprido um rico nó onde o posso agarrar sem escorregar, fica entre a minha mão e o seu pulsar, transpiro e trinco a língua, metade fica de fora, aguento um tempo, já está, bicho do mato insolente, prepotente, intransigente, agora quem manda sou eu, vou-te largar, pisga-te, oupas, vai-te, desaparece, põe-te a andar até onde as urtigas te irão perseguir se me voltares a atacar.
vem uma e despeja os problemas, atendo outros que despejam as frustrações, berram, dizem palavrões, chego a casa e este despeja o que não despeja dos colhões, é mesmo assim, anda o mundo a querer despejar tudo em mim, depois é um que não paga, outro que não assina, pedem-me satisfações, a bruxa que faz boicotes, as vassalas com caras de quem esconde o corte nos travões, o calor que me derrete, os nervos na retrete, as lágrimas que só querem saltar, saltar, sem escolherem a hora e o lugar, como eu queria miminho, Riminho, desato a gritar sem gritar, não ouvem, só ouço eu, não sou vossa mãe nem quero ser mãe de ninguém, estou farta, vão lavar as fraldas ao mar, não, melhor muito melhor, deitem-nas fora e vão comprar outras à china. a pé.
desde que fui para lá trabalhar que criámos uma espécie de amizade. a Rosinha é a costureira que tem um ateliê mesmo em frente, lá nas galerias, é mulher do empregado-escravo de confiança do meu patrão. ontem a Rosinha estava feliz, corte de cabelo novo, olho pintado de azul, quando nos cruzámos nas escadas. tenho uma coisa muito importante para lhe contar, Linda, chama-me Linda, sinto-me leve e fresca porque finalmente ganhei coragem e liguei à dona do ateliê a informar de que em final de agosto já não regresso, vou deixar isto, entregar tudo, cinquaenta anos a fazer o que não gosto é muito tempo e já falei com o António e com as minhas filhas, quero encostar, viver tranquila sem ter de as aturar, estas clientes - a Linda sabe - derretem-me os nervos e a paciência, humilham-me, então vou para casa fazer outras coisas, descansar. abracei-a e beijei-a e confortei-a e dei-lhe palavras de orgulho - orgulho porque a Rosinha sofre de depressão crónica e eu tenho ajudado um pouco, todos os dias lhe dou um sorriso e uma palavra de força e atenção, gosto muito dela, cedo percebi tratar-se de uma pessoa com um grande valor, excelente mesmo. então a Rosinha ontem estava feliz. talvez a próxima etapa seja a de conseguir deixar o marido, o marido como o ateliê que ela teve de aguentar durante cinquenta anos sem gostar, porque o marido da Rosinha desconhece-a, nada sabe dela, não lhe dá atenção, sequer consegue vê-la. talvez o próximo esgar de felicidade da Rosinha seja quando me disser Linda, tenho uma coisa para lhe contar, estou muito feliz, consegui dizer ao António que o vou entregar, deixar isto que é o António.
percebesse eu de música
compunha-lhe uma melodia
juntava nela todos os sons bonitos do mundo
e ainda mais alguns inventados
receitinha olindesca
depois ouvia-a sem parar
convocava a assembleia geral dos bichos e das flores e das pedras
presidida pelos rios e pelos mares
perante o tecto infinito de alumbrar
e declarava-a o hino triunfal
e era pouco muito pouco
afinal
agora ela não tem tempo para mim, agora desde que recebeu - ela e o marido - os nove refugiados em sua casa, são família, não tem tempo para mim e compreendo-a. uma das meninas tem um cancro e só ela pode acompanhá-la ao IPO, por causa da língua. também tem de acompanhar as crianças na escola, por causa da língua. e tem de gerir tudo o resto enquanto o marido vai trabalhar, está desempregada. de vez em quando vai até lisboa descansar, para casa da filha que só pensa em ser uma estrela, e também não tem tempo para mim. compreendo, compreendo sempre tudo, não é por isso que deixo de ajudar. mas deixei de fazer tudo aquilo que a filha pode fazer e não faz, a filha que vive para mostrar o que não tem, ser o que não é. porque se tem tempo para registar tão assiduamente o que come, o que bebe, o que veste e o que despe, onde vai e onde fica, nas redes sociais, então que use esse tempo para fazer o que a mim me pediam. pois.
eu digo, eu digo o que aquelas porcas andam a comer: arroz com atum em óleo, pataniscas de chouriço corrente, mixórdias pré-cozinhadas descongeladas no microondas, calamares murchos com batatas fritas de presunto. é que é cada porcaria pior do que a outra que me dá nojo e exclamação. e depois ficam a olhar para as minhas sopas e para o resto que não é restos, que antecedem sempre o resto, o resto que leva tempo a preparar de véspera, pois claro, é preciso dedicação para cozinhar e para comer. ora isso explica bem a forma de estarem e de serem e de trabalharem: estaão e são e trabalham em óleo, chouriço corrente e descongelação à pressão. são porcas. e a porca-mor, que esta semana esteve de férias, vai regressar para festejar a porcaria - mesmo antes de sair percebi que receberam mensagem comum, reservaram-se sem me chamarem na copa, receberam instruções para a semana que se segue que tenho de vencer.
porque vencer pode ser simplesmente aguentar, inibir a perturbação. mas isso é muito pouco, tão poucochinho, para quem deseja, como eu, ter um mundo limpo pela minha mão.
se este calor não parar, um dia vou derreter
depois de acordar duas mil vezes durante a noite
para depois adormecer
qual alibabá
qual livro, qual canção
duas mil noites que passamos juntos
é o mote dos meus sonhos
em bicos de beijos e rendinhas e sussuros
tantos abraços e amassos
tantas brisas meiguinhas nas persianas a fechar
para depois se abrirem
insónias de duas mil noites
com o Ramor das arábias
à minha moda inventado
e sonhado
Ralibabá, bababáRali
em cada canto há uma pessoa maluquinha a respirar e a emanar maldades e crueldades para o ar, cargas negativas, que todos temos de engolir já que o ar é um espaço comum. depois filtramos e separamos e vamos a correr buscar perfume. de alguma forma ontem, naquela hora improvável, fui procurá-lo e encontrei-o. deitei-me no seu algodão e cochilei um pedacinho, sosseguei. depois abanou-me a voz da oposição: não podes estar aqui a esta hora, menina, raspa-te, salto dali para acolá, onde também não deveria estar mas onde decidi ir quando me apetecer, uma espécie de infracção consentida por me fazer todo o sentido. a diferença entre as infracções é mesmo essa: uma causa-me culpa e a outra não - porque uma associo a ócio, água e nadar, e a outra a escola e a lição, pensar e dizer e refilar e criticar e assentar ideias. é estranho mas também não estranho por conta de já não me estranhar. entranha-se, menina, diz-me o Pessoa perante o flagrante do delito. delito não é delitro, menina, deleite-se. ouço-lhe o conselho e sossego a culpa: só tenho de esperar mais um par de horas, a vida é fodida, um par de horas como o passaporte para o banhinho fresco com pétalas e linhas e rocha e cores e palavras que soltam, e me soltam, dos horrores.
e de onde vem aquela perfeição que aos olhos me são seda pela sua mão? queria ser eu a escolher e a cortar as tulipas, explicar-lhes a eternidade para onde vão, vê-las ficarem felizes por saberem que me serão as deusas das deusas - um grande, enorme, gigantesco, coração.
lembrei-me e partilhei-o e reli-o. gostei muito de o reler, há pormenores que já não me lembrava. é estranho, lembro-me exactamente do dia em que o escrevi, comecei e só parei quando me apeteceu, e não me lembrava de tudo o que escrevi. sorri. é, de facto, um mistério muito grande o sítio onde nasce aquilo que vemos, que só nós vemos. é-me epifania, sai e pronto. agora, a anos de distância, já consigo decifrar as camadas das cebolas. sim, das cebolas. no plural. e ele tem muita razão, sim senhor, quando me disse que o que vemos é muito diferente do que dizemos. porque quando o leio já me aparece a voz, daquilo que importa, marcado a fluorescente cor de rosa. e guardo, não tenho de dizer, muito menos porque sei que outros estão a ver, são segredos partilhados que reservo e afago. depois embalo-os, beijoqueira incurável, para ajudar a dor a morrer.
ó rapariga estás atrasada, cala-te, ainda tenho um fiozinho de tempo para dizer que não fossem os mosquitos porqueiros a atazanarem-me o sono, a propósito descobri que eles não gostam da ventoinha, ahan, agora é que vai ser, a ventoinha como o meu cérbero de estimação com três cabeças: vinde, vinde, daqui não ides sair, !ai! que riso, como estava a dizer, não fossem os mosquitos tinha continuado a sonhar com Aristóteles que Zeus me deu e hoje vou terminar. imaginei-o a dizer que quereis, Homero não é responsável pelas interpretações que dele fazeis - vós não sabeis é ler, tal e qual como eu digo lá quando deturpam os meus emails. que consolo.
a minha casa, a casa que escolhi para viver doze anos, doze anos só porque a vida assim traçou, era um lugar mágico. havia rendinhas por toda a parte. era cortinas encantadas em espaços improváveis, era a pintura nas paredes - como se as paredes fossem, e são, telas gordas - e nas portas de madeira, era as borboletas gigantes que pousavam nos candeeiros e as pequeninhas que refrescavam o frigorífico e a arca e perfumavam outras máquinas que nos aliviam a carga dos trabalhos domésticos, era a sereia em barro antigo que reinava na entrada junto ao espelho, era os mil e um espelhos incríveis na forma e nos materiais, era as jarras e as flores que copiosamente emitiam um perfume colorido, era os quadros que pintei e inventei juntando tecidos e pedras e folhas e brilhos. depois foi tudo lá para a garagem da outra irmã, pensei, não tardará e venho buscar. passaram dez anos e nunca tive outra casa para encher de magia nem outro espaço onde voltar a guardar. e no dia da chantagem, olha, tens de vir buscar as tuas coisas senão vou chamar um camião de recolha e vai tudo para o lixo, aproveitas e trazes as coisas do Afonso. de maneira que, como não cedo a chantagens, ela há-de ter-se governado bem e recheado a casa dela com umas coisas e ganho algum vendendo outras.
e se é hoje, aos nove de Julho, que o meu Ramor se celebra no seu jeito de ser Portentão, Conde, Zeus, então eu acordei logo depois da meia noite porque o senti no meio do inferno do calor, será ele a tal brisa e chuva fresquinha que o tempo afinal me mandou, por dentro do meu refilar. !ai! se eu pudesse contar-lhe nos olhos e na pele, deste meu grudar de gengibre com mel, começava logo a festejar com uns sininhos meiguinhos, muitos beijos linguados sempre crescentes e depois preparava-lhe petiscos ao som de uma música a cantarolar, era uma estrela para um estrelado, brilhos muitos soprava, ficaríamos cobertos em um manto de flores e de águas de rosa, poesia, !tanta! na prosa, e depois ver a direitinha a sorrir, arregaçava a emoção, pois claro, fazia parelha com os olhos que se rasgavam também, brilhantes, brilhantes, como se fossem uma travessia em uma piroga lá num lago para lá dos montes, o sítio do imbondeiro amarelo vestido dele e de mim e de nós, um paraíso que nunca se perdeu e que foi inventado para ser só nosso e da nossa voz e muito mais, muito mais, e se é hoje, vou andar agora a perguntar ao ar, refilona, até o ar me expulsar de tanto ouvir e se é hoje que se celebra o meu Ramor. de repente, páro. e o ar dá-me dois beliscões: ó menina, se é hoje passa a ser amanhã e depois de amanhã também: todos os dias são os melhores dias para ofereceres o teu melhor a esse alguém. tens razão, ar do meu arfar, todos os dias eu o celebro por dentro e por fora de mim neste Ramor que parece, parece por que é assim, neste Ramor que só teve começo e não lhe pressinto fim
é impossível lê-lo e não rir ou não sorrir ou não chorar ou tudo ao mesmo tempo. dizem os sábios das letras que a perfeição leva muito tempo a ser atingida, esquecendo o ímpeto da imperfeição que nos torna humanos.
ora ele é a obra de arte mais arte que eu já li seja em que registo for. não interessa sobre e como escreve: a sensibilidade com que produz, por ser o cúmulo da sensibilidade, torna-o no ser humano mais perfeitamente imperfeito de todo o universo.
ele é, o brilho maior, o brilhante que eu gostava de ter em mim e comigo até ao fim do mundo, até ao fim do mundo porque sendo um brilho maior o mundo é que estará sempre para acabar, não e nunca e em tempo algum nele nem em mim. é o mundo que tem fim, amor, esse amor com paixão que eu sei que há como eu quero. como eu só quero. como mais ninguém tem.
eu sei que é este mês mas desconheço o dia, cáspite, como eu queria saber o dia. mas que interessa saber o dia se todos os dias são de alegria? não, cala-te, não é bem assim,
é preciso saber tudo
para não entristecer
como se viver fosse
, é é,
nascer e nascer e nascer
nunca me hei-de cansar de dizer que as mulheres são umas cabras. e são ainda mais cabras quando percebem que eu não sou cabra, é assim uma espécie de serem - em frequência acumulada - pela inveja de eu não ser mas de ver que são. abri as pestanas, demorou tempo mas abri. porque lá, na montra para o mundo, tudo o que se disser com o nosso nome e com a nossa pele, fica para sempre - uns copiam, outros inspiram-se, outros desdenham, outros julgam, outros abusam e nada, nada, vale essa consumição e essa consumibilidade quando somos livres para dizer o que queremos mas não o suficiente para gerirmos as consequências do que dizemos no trabalho, no trabalho onde não podemos dizer o que queremos a quem queremos.
de maneira que tudo o que eu dizia era um saco de balas que usavam contra mim - tentavam decifrar-me com todos os perigos que isso implica e a minha vida era ainda mais difícil. tudo era aproveitadi e reaproveitado e utilizado e reutilizado. espera lá, se eu me calar elas - e depois eles por elas - ficam a saber o mesmo e a navegar na maionese e a patinarem nos comportamentos ensaiados que costumam ter depois de eu me dar a ler. pois. e depois, também se acabou a musa dos mamões - dos que são fina flor e que sempre me desdenharam, os mesmos que também me copiavam e brilhavam.
que bom, agora é que eu respiro bem de flor em flor. até nisso ele me é amor.
ora bem, vamos lá ver, os padres usam aquelas vestes de saia largas e compridas para não se notarem as erecções, pois claro, não são assexuados e a carne com que nasceram pendurada quando fala não dá para disfarçar. obviamente que haverá quem transforme a energia sexual em criativa mas isso é outra coisa paralela porque ainda assim antes de o ser ela manifesta-se e tem de sair, sair por sair não é um orgasmo, para depois sair outra vez e aí depois talvez o seja de forma metafórica. o padre antónio vieira, por exemplo, por debaixo daquele vestido vermelho de veludo carregava, com toda a certeza, erecções que não poderia contrariar porque era feito de carne. como ele fazia, não sei, talvez andasse sempre a esgalhar a fruta ou a relacionar-se furtivamente. e se Deus é masculino, perdoa-me. era o que ele deveria pensar quando fazia as descargas.
adormeci de barriga para baixo agarrada à almofada a abraçá-lo, como sempre abraço, adormeci como uma princesa. as mãos que escreveu ficaram a bailar por cima da covinha das lágrimas e do ranho. ah, pois, mas é essa covinha que te safa, menina, essa covinha e o tanto que despejas dos intestinos logo quando acordas, como se adormecer e acordar fosse, e é, guardar o melhor e expelir o pior. de maneira que lágrimas e cagalhões perfazem o mote perfeito da minha existência.
o que eu gosto dele no que vi sem ver sem conseguir justificar não é de acreditar, é daquelas coisas singulares todas no plural, todas a multiplicar e a somar que tenho de dividir para não me subtraír. é uma estranha clareza e uma inevitável leveza natural e fundamental, uma palpável força transcendental e um brilho de estrela cadente com cheirinho de pasta de dentes de mentol tal e qual como acho eu a que sabe o sol pudesse eu o trincar depois de o estrelar como se faz com as omoletes ricas em salsinha e queijo. ainda tenho tempo de reler mais uma vez para gravar mais umas expressões que me fazem cantar no caminho do asfalto que sou obrigada a calcar.
pus-me a caminho para fazer o teste, será quase impossível não ter apanhado o vírus, sou a única que ainda resiste, depois de tanta proximidade durante uma semana terei com certeza, vou fazê-lo já na farmácia e assim não vou ter de me preocupar com nova testagem e ligação para o SNS, fica tudo tratado de uma assentada. quem me dera não estar covidzada, quem me dera não ficar doente e, se ficar, que seja algo tão leve que não me iniba de rabiar, penso repetidamente, estou com a cabeça em água, exige de mim o que não exige de mais ninguém, dou-lhe tanto a esbordar e fica mau, raivoso, cabrão. e se eu ficar doente, além de ter de continuar a dar não vou ter quem me dê a mim, elas não podem deixar os maridos e os filhos, vou ter de me arrastar e sacrificar a dobrar, não, não posso ficar doente.
negativíssimo. sozinha fiz uma festa antes de regressar e ter de estar com o cabrão, às vezes é o maior cabrão de todos, e compro as farturas que andava a desejar. como duas, fico enjoada, e fico a pensar no que me enjoa mais antes de abrir a porta. só quero despachar tudo e chorar. até adormecer de exaustão.
ninguém sabe o que acontece durante o sono quando saltamos para uma realidade paralela incontrolável na consciência e onde tudo pode acontecer. é como se fossemos levados para um livro ou para um filme ou um disco onde há uma história, outras vezes vários contos, outras ainda pequenas aparições - uma espécie de assinaturas sequênciadas sem sequência alguma. há dias, dias nas noites, em que sequer nos lembramos de alguma coisa e é como se, restaurados, tivessemos dormido a correr. é um mistério, a pequena morte. depois temos os pássaros a refilar e os galos a elevar a voz e os cães a falar em desconcerto e as árvores a deixar as geadinhas darem banho às folhas para nos avisarem de que a vida está aí à espreita ainda com remelas frescas no vestido cinzento que vamos pintar.
porque a vida também é um quadro que todos os dias pintamos ou deixamos por pintar, um papel em branco que todos os dias escrevemos ou deixamos de escrever, um vinil que não pode estar riscado para escolhermos o que queremos ouvir e cantarolar e um pezinho de dança dar.
e se for tango, e se só nos sentirmos que queremos tango?
querem saber o perfume que uso. ela anda há seis anos a querer saber o perfume que uso e agora as outras, que vão chegando, também. e todos os dias arranjam uma maneira, uma rasteira, para ver se eu digo. ridículas, ainda não perceberam que estão a milhas de me conseguirem enganar - e a anos luz de saberem do meu perfume e do meu cheiro e da minha pele. não troco de perfume, é o mesmo há trinta anos, assim como não troco de cheiro nem de pele - de me ser no que é essencial.
o ódio também nasce da inveja de ser.
depois chorei, depois de ficar tão feliz chorei, adormeci a chorar e dormi a chorar e acordei em choro, em um pranto e sem forças, também - e nem vale a penas disfarçar, dizer que não sei porquê, porque sei. porque eu fui espreitar e carreguei no dói-dói que não sabia que doía tanto, passei a vida a ter ideias e a fracassar, a arranjar planos e estratégias para os outros, para tudo de todos, mangas arregaçadas e sempre a avançar, e entretanto abandonei-me ao azar da minha sorte e nem sequer sei como fazer para fazer o esquisso de planear. nem sequer sei como me recomeçar.
quando deixei cair mais um telemóvel novinho em folha na retrete, está sempre a acontecer, há-de ser a minha resistência às voltas com a tripa, houve uma vez que depois apanhei-o, lavei-o e metio-o em arroz, li na internet, enfim, quer dizer, encharquei-o ainda mais para depois o secar, matei-o com tanto mimo, bem visto, enfim, Olindices, como estava a dizer, perdi todas as fotografias que já tinha coleccionado desde o ano passado. havia uma que me era especialmente querida por conta de associá-la a um texto que fiz, uma visão, com o fundo de azulejos branquinhos, sensualíssima no sentir e no tocar. adoro-a e ainda um destes dias me pus a reconstrui-la na minha cabecinha de ventos e águas fortes, traço a traço, do que me lembrava. e agora, de repente, como um gengibrado brigadeiro, que é o que ele é, apareceu outra vez, capturei-a e lancei um feitiço no equipamento que também carrega o meu derriço
oppo meu, oppo meu,
a tua responsabilidade agora é a triplicar
e se pensares na retrete
hás-de segurar-te por mim
que estou livre em cativeiro
no meu gengibrado brigadeiro
e agora vou passar o dia a apreciar-lhe a geometria do pensar por debaixo dos olhos que me matam de sorrir, aparar-lhe as cinzas que saem pelos lábios da régua que quero sublinhar com os meus lápis de cor de amor: não me chega apenas sonhar, né rapá?
cheguei a casa e o meu pai estava na cama. o meu pai nunca está na cama a não ser para dormir e anda sempre no laréu desde que se reformou: vai ao ginásio, vai caminhar, vai ao baile, vai namorar, vai escolher vinhos para ele, vai aos legumes e às frutas de acordo com a lista que lhe deixo sempre acompanhada de um billhete com um coração e beijinhos. ontem quando cheguei estava na cama. olho para ele e imediatamente lembro-me do teste que comprei para uma emergência, até agora nunca precisei de o usar, abro-o e fico a olhar para o teste como um burro para um palácio. tiro-lhe a febre e faço-lhe um pequeno questionário. já nervosa, nervosa porque o meu pai nunca está na cama, ligo ao meu irmão que me rejeita as chamadas duas vezes e recebo uma sms: irmã, é urgente? estou a dar treino até às 21:30h. respondo que sim. eu nunca digo ao meu irmão que é urgente e liga-me logo de seguida. com o coração que me salta para as mãos, digo que sim, que precisa de passar aqui para lhe fazer o teste porque há muitas coisas que sou trenga por opção e não quero mesmo saber fazer testes. desliguei o computador e fiquei a aguardar até às dez horas e depois eram aí umas dez e um quarto quando o teste disse que sim, que o meu pai está com COVID por cima da diabetes e do coração. também o meu está apertado de preocupação e não sei se vou conseguir estar lá estando cá, não sei se o COVID também me apanhou pela boleia do meu pai. não sei, só sei que nada sei.
não sabia explicar onde fui buscar a ideia de escrever algo horrendo assim. e estive a pensar no que a minha prima uma vez me contou, que a minha mãe fez inúmeros abortos antes de eu nascer e que o desejo deles era que eu fosse um menino e que se assim tivesse sido não teriam quatro filhos porque eu nasci no meio. eu fui um engano depois de vários afogamentos por ser, pensei, depois chorei para o mundo, os bebés choram precisamente porque saem do conforto para virem a este mundo, choram pois, alguns demoram a chorar, fazem procrastinação do chegar, penso, até levarem umas traulitadas para o choro vir. como estava a dizer, chorei para o mundo no dia de carnaval desse ano muito bonita e redondinha, dizem; ainda não andava e já me pirava com a regueifa na praia para trás de uma duna - queria ficar sozinha e em paz; depois comecei a andar no cinema passos manuel, talvez para fugir da multidão, e terá vindo daí a minha paixão pelos saltos altos atendendo à perspectiva do horizonte a gatinhar até me levantar em direcção à saída. depois, enquanto os meus irmãso pediam brinquedos no natal, eu pedia dicionários e mapas; depois quando todos da minha idade queriam ler uma aventura eu quis os esteiros e a severa. ainda depois, eu ficava a olhar a serra no parapeito da janela enquanto os outos brincavam na rua. talvez depois de ela ter morrido também eu a tenha matado, sim, por conta de me ter roubado a meninice: ela meteu-se em mim e nunca mais saiu. e eu fui eu e mais ela, mais sempre mais eu porque a ternura não lha conheci - inventei-a e juntei-a à minha. a minha ternura. agora sou só eu, matei-a outra vez, metia-a no seu lugar de minha mãe por ser, de ternura por fazer, de menina que deixou de cuidar. agora sou só eu. agora és só tu, Olinda, não precisas dela para nada.
não deveria ser assim mas a falta que o computador me faz, a internet no computador. como se a ligação ao mundo, ao mundo que me interessa, a ele, dependesse de uma rede sem fios. porque se não fosse isso, era para o lado que dormia melhor, queria lá saber, não falta com o que me entreter. mas a questão é mesmo essa: não me é entretenimento, é-me portento.
e depois tem sido um trinta e um para me conseguir ligar, até sinto orgulho de mim, trocas e baldrocas, engenhocas, carrego aqui e ali e além, irrito-me, depois inspiro e expiro, conto cabrões em vez de carneiros e lá dá, passo do telemóvel para aqui a putéfia da rede. é que não percebo mesmo nada disto, não sei como funciona e nem sequer quero saber. depois quando estou aflita arrependo-me por não querer saber mas são apenas uns breves segundos de arrependimento porque logo me dá a comichão. definitivamente não quero saber. só quero mesmo é que amanhã de manhã venham cá, como está marcado desde os foguetes monstruosos do santo joão, se tem jeito o santo a levar com foguetes, dos peidos fogem mas dos foguetes gostam, cambada de malucos, como estava a dizer que venham arranjar tudo. e depois posso novamente esquecer os botões do telemóvel e as procuras de redes e essas coisas chatas e horrendas e abomináveis.
apresentam-me ambiguidades atrás de ambiguidades como se eu fosse, e sou, a rainha da descodificação, ficam a aguardar que eu dê sinais de que percebi e que tenho de resolver somo se as coordenadas fossem, e são, afinal, de mim para mim e para o regalo deles que vêem o porco a engordar por conta do meu lutar. estou cansada e estou cansada e estou cansada. foda-se, penso amiúde, vão cagar ao monte e levar com urtigas no cu.
li não sem onde, escreveu não sei quem, não importa onde nem quem, importa que agarrei, como estava a dizer, li que a ambiguidade é que é o melhor - nem amanhecer nem escura noite, ambiguidade como o sol a pôr-se. quero, então, responder não sei a quem que está não sei onde que não será bem assim porque na vida está tudo ligadinho: há o amor, há o prazer e há o prazer do e no amor. a ambiguidade, quando passa dos limites, quando só se põe como o sol a encavalitar o mar para depois se desfazer, é intranquila e faz crescer dúvidas, dúvidas como ervas daninhas, no jardim das certezas que nunca são certezas certinhas. as certezas são bálsamos que apenas sentimos, nascem de dentro, podem ser bálsamos ou venenos perante o que só temos. obviamente. então é isso, meti-me a pensar nisso depois de me enervar lá onde o sol só se põe e não é para mim, lá será para os cabrões, homessa, para mim tem de ser a luz do meio dia mesmo quando amanhece e escurece, eu quero o prazer do e no amor apaixonadamente tranquilo. está dito e não arredo pé.
sou literária a pensar e a contar sem, no entanto, transformar. o que é o que é, não faço literatura. é muito simples, sou só eu.
bastou perceber que teria de se esforçar muito para a meter num lar imediatamente, nem tempo tive de me despedir e de lhe deixar uma brisa no rosto, sim, porque marcada de mim já ela estará para sempre. como as coisas são rápidas e simples quando são um peso pesado para alguns, penso, enquanto acelero na estrada para chegar onde já não tenho vontade de chegar. a noite foi dura: houve foguetes, aquele artifício nojento que os cães e que eu odeio, a acordarem-me com susto, o sangue que não pára de jorrar e a saudade do que nunca mexi. anda, dorme, adormece, amanhã é outro dia novo a estrear, viro para um lado, viro para outro, levanto-me, passo a pomada uma e outra vez, parece a assadura dos bebés que não passa e arde muito, desconforto, persianas que fecham mas não se apagam, cérebro a mil, carros que passam sem pantufinhas de lã, deve estar a chover porque os pneus caem nas poças, senão não ouvia o grosso chapinhar, gatos vadios, ou com o cio, parecem crianças a chorar, essa é uma razão porque não lhes aprecio a companhia, depois uma campainha a tocar ininterruptamente, mas o que é isto, o mundo inteiro a azucrinar-me o sono, o riso e o amor, vou fazer queixa ao kundera depois de contar tudo ao do meu derriço, conchinha não há, calam-se os cabrões dos gatos finalmente, ou as poças secaram ou os carros deixaram de passar, o meu sangue continua a correr e talvez a pimenta no rabo seja agora açúcar. adormeci, sono que se esticou como um elástico, se calhar foi o que está a aguardar a saia, !ah!, e acordei realmente em beijo de derriço como se fosse real, abraço a almofada e deixo-me escorregar até à banheira para me levantar. bom dia, Olinda, chegou ao seu destino: tem meia hora para entrar na realidade fantástica e travar a batalha de alljubasrotas do dia. até já.
às vezes canso-me. às vezes penso: hoje não vou fazer do dia poesia e fico a observar e canso-me também. porque se eu não fizer do dia poesia, alguma coisa tem de ser poesia, o dia não é dia. fica uma página em branco, sem nada a registar. porque o mundo está cheio de gente descontente que nada tem para acrescentar, faz-me confusão, gente que vive por fora. aquela também estava a querer esticar a corda comigo, não sei bem por que razão as pessoas pensam que podem esticar a corda, deveriam pensar ao contrário: então se é paciente e tolerante e perseverante, mais uma razão para considerar e respeitar em triplo. mas não, fazem ao contrário, ela estava a querer que hoje fosse eu a lá ir cuidar da tia antes de ir trabalhar. então esticou a corda. tenho reparado que usa as mesmas calças desde segunda-feira e o tempo que lá tem estado, deve andar com medo que alguém faça queixa dela por não cuidar da velhinha doente, em vez de limpar e arejar a casa, de lavar e aprumar a tia, fica no telemóvel só a fazer corpo presente. depois gaba-se de ter muito trabalho porque é professora e que não tem tempo. ora o tempo também se faz tanto quanto se desfaz, haja vontade e da boa. vai daí, ignorei toda a sua conversa, disse-lhe explicitamente que não, e saí de lá a ouvi-la dizer que vem às sete da manhã antes de ir para a escola. excelente. é porque ando há mais de seis anos a injectar poesia na casa da sua tia, pensei, quantas vezes lhe liguei aflita e não atendeu. sms: estou num concerto e amanhã ligo. cabra. estou rodeada de cabras e de cabras badalhocas que andam com as mesmas calças mais de uma semana seguida, quer dizer, o que é isto, aquelas calças devem cheirar a bacalhau além de serem altamente reveladoras da monotonia dela. como é que alguém que é mulher consegue pegar nas mesmas calças todos os dias sem se cansar? olha, menina, da mesma forma que todos os dias durante estes anos todos olhava para a tia ao longe sem se mexer. tem estômago de glaciar, só pode. tenho de me controlar. porque se hoje aparece outra vez com as mesmas calças será o cúmulo da repetição que gera a narrativa de desleixo e de desapego, tenho de agarrar na minha língua e segurá-la bem como se faz com o peixe que escorrega enquanto se está a amanhar. que remédio. e o melhor remédio é, pois, fazer uma poesia: transformei um vestido antigo em uma saia, falta acrescentar um forro para inibir a transparência e fazer a cintura elástica para ficar um regalo. depois a saia, feita de poesia, em poesia se tornará sempre que a passear no dia, em um dia qualquer.
ia começar a ver o filme, feliz pelo reencontro, tão feliz, não era muito extenso e poderia acertar com os afazeres, quando como se a tivesse ouvido sem ouvir, porque seria impossível, fica do outro lado da rua, quem me dera ter ouvidos de cadela mas não tenho ou se tenho desconheço, talvez tenha, afinal, como estava a dizer, levanto-me e visto uma camisola de alças e pego em um vestido fresco de andar em casa para meter em cima da camisola, como se a camisola fosse - e é - um substituto do soutien sem ser, por ser, por ser porque em nada lhe cumpre com as mesmas funções, a camisola de alças apenas mete o soutien no sítio dele que é na gaveta, se eu pudesse todos os dias o soutien vivia na gaveta mas não pode ser, uma das funções do pedaço de tecido é evitar que se notem saliências. adiante.
pego no telemóvel e na chave, volto já, digo, vou ali à Dona N.. ainda estou a meter a chave na porta quando começo a ouvir os seus gritos como se estivesse a rezar, jesus, meu jesus, jesus meu jesus, vejo-a na cama sem se conseguir mexer. sou eu, Dona N., digo enquanto já me sinto em tremor de carne, nervos em preguinhas de susto, abraço-a e percebo que não consegue levantar-se sozinha, chama-me anjo da guarda e demora uns minutos para me associar ao nome. levo-a até à casa de banho que fica no extremo da casa, barafusto, se tem algum jeito dividirem a casa assim, e também penso mas não digo na miséria que é a sobrinha ainda não ter chegado aonde não deveria de ter saído, deveria dormir lá enquanto não há outra maneira. demora uma eternidade para conseguir fazer descer a urina aguentada tantas horas e ainda tremo mais. depois vou abrir a janela e ponho a água ao lume para lhe fazer o chá para a primeira refeição enquanto lhe separo as pastilhas. jesus, meus jesus, jesus, meu jesus, continuo a ouvir e a tremer-me toda. penso que a continuar nervosa assim com tantas coisas dos outros que vêm ter a mim não tardará o meu sangue descer outra vez e talvez outra no mesmo mês como se o meu sangue fosse, e é, a minha maior reacção juntamente com as lágrimas e o suor. naquela altura já estava encharcada em suor só de estar a arranjar uma forma de a levantar para a fazer chegar à cozinha e as lágrimas tive de as aguentar até bem mais tarde. entretanto chega a sobrinha para lhe dar o pequeno almoço eram quase onze da manhã. que tristeza, já estava, pois claro que já estava, eu ouvi-a sem a ter ouvido e tremi o que não deveria tremer e, sim, o sangue que deveria estar sossegadinho voltou a descer. já não bastava o monte de gente reles do pão, a dor de ouvidos, o dente, e o maldito antibiótico do tamanho de um ovo de codorniz que me fez rebentar o rabinho por durante oito dias o engolir. porque os nervos perante as injustiças rebentam-me toda.
assim que eu pude escolher como queria, rodeei-me de espelhos, quanto mais peculiares melhor, molduras em relevo de rosas, laços e lacinhos nos cantos, outros velhos com manchas do tempo, outros com tecido esponjoso que pintei de dourado. tenho um que pendurei brilhantes na madeira acabada de alterar, de preto o fiz pérola, e outro que é um sol. depois há um pequenino com bolinhas coladas em redor e aquele com talha dourada e colada que apanhei ao pé do lixo quando ía a passar: recuperei-o só para mim. e muitos mais. mas nunca tinha percebido bem de onde vinha esta paixão, a de ter um espelho sempre à mão e ao lado e por cima como se fosse o meu pé.
epifania, !ai!, que depois de apreciar as flores que me deu, tenho a mania de as cheirar como minhas, sai-me de rajada que se elas forem espelhos de nós nunca estamos sós. e é isso, querida Olinda, o segredo é estarmos rodeados de flores que nos enchem o coração.
o livrinho escuro tinha chagado na quarta, fui buscá-lo aos CTT, e li-o ontem de manhã cedo em uma assentada. nada de novo, portanto, até me parece, pelo conceito, um pastiche da parte escura do livro do Rei - mas só da parte escura e não como um todo e muito menos pela parte que me reiluminou assim que o li: o brilho ultra-romântico.
como estava a dizer, li-o em uma assentada e penso nas cinco estrelas por tanto que já conheço: do particular para o universal só vai quem conta os tiros no escuro. ora eu divirto-me imenso com os escuros e os tiros dos outros, é verdade, por saber que é mesmo assim, palhaços com uma bola no nariz e uma cenoura no cu, cornos, desmesuradas irresponsabilidades, vícios, porcarias, enfim, erros justificáveis por conta de se ser humano porque ser humano é ser um erro feito de muitos erros. e depois a lengalenga literária de que é o escuro que nos faz vivos e aptos a desenvolvermos a nossa actividade vivencial, e tal, uma espécie de ficha de aptidão, que sem escuro não há vida e que andamos aqui mesmo só para nos fodermos uns aos outros e o resto é paisagem.
então e onde é que eu fico no meio disto tudo, penso amiúde, olha fico a divertir-me com os erros da literatura sobre os erros da humanidade em geral e que não são, nunca foram e nunca serão, os meus em particular. porque eu não posso confessar o que não há, o que não me há porque não houve. e depois vem o choradinho do abandono e da punição porque há sempre alguém que no meio da podridão - a podridão que é normal nos podres porque ser podre é ser humano - dá de frosques. ora o meu escuro é pegar na faca ou na caçadeira e foder as ventas aos escuros que escurecem a vida dos outros; fodo-lhes as ventas até aos ossos e isso é-me irremediavelmente certinho.
mas o que me deixa triste no meio da palhaçada dos outros que me diverte na realidade da literatura é perceber claramente, na realidade fantástica, que estes são incapazes de perceber que é a claridade que me ilumina. e continuam, afincadamente, a escarafunchar o escuro deles próprios. é o sofá do conforto.
e se o tempo, o tempo que se faz sol e chuva e vento e trovão, for meu súbdito? de repente, tudo é de repente, o calor abrasador derrete-se em vendaval e pingos grossos de se fazerem notar como quem diz, e diz, estou aqui, e depois o vento apressado assobia e espalha-se como que diz, e diz, não estou a assobiar para o lado e depois carrega-se em si para chegar a ela, chuva, e a chuva chove-se, passa de trote a galope misturada com o trovão da ordem como quem solta uma gargalhada possante como quem diz, e diz, quem manda aqui no reino do tempo sou eu, e fá-lo de forma estridente como quem pega no tridente depois de ouvir o eco és, és. então a rainha do tempo sabe que com o calor abrasador algo está para estourar, é ela que não tarda vai morrer, tal e qual como quando foi com o calor da filha, também morreu depois de eu tanto a socorrer, valeu a pena socorrê-la, morreu com mais doçura, talvez, talvez tenha morrido arrependida de nunca ter socorrido ninguém, e agora morre a mãe já a roçar-se nos noventa e em mim, eu que pareço já ter cem, choro-a com o vento que assobia e depois sinto os pingos grossos que me avisam da frescura que há-de vir para me continuar a acalmar também lá onde teimam em me humilhar, nada mais a fazer, o meu açucar não se pode enervar e então o vendaval começa a tocar, concerto que é para mim com o vocalista trovão a abanar-me toda: minha rainha ou ficas ou sais, pensa bem, porque se sais talvez possas perder mais, depois terás a punição, pensa no teu pai e no incansável sermão, não queiras depender dele, não, e então o trovão solta a gargalhada estridente para cessar o meu cansaço pela exaustão, cenário de guerra no ar, tantos a morrrer e outros tantos por matar, tudo entra em mim. pára tudo, ordeno, quero gotinhas ping ping,ping, brisa em pé de dança, sono bom. amanhã é outro dia e outros mais tranquilos se seguirão. talvez. talvez.