quinta-feira, 25 de agosto de 2022

o meu dedo em riste para ela

a propósito deste pedante, também tenho lá onde trabalho uma c, c de coleguita que diz que tem um milhão de seguidores no instagram. até aqui tudo bem, as pessoas gostam de seguir tendências de cinismo e isso é lá com elas. no outro dia, estava eu a comer os meus tomates com bolachas de aveia, ao lanche, e reparei que ficou a ougar as bolachas, reparei porque ficou colada nelas. ofereci-lhe uma das três que tinha para comer ao que me responde: nem pensar, não posso, mas não podes porquê, está bem, vou aceitar desde que me prometas que não contas aos meus seguidores que estou a sair da linha. a minha vontade era mesmo dizer-lhe que é feia, mesmo feia, feia pela forma como vive e feia de rosto, parece um reflexo de cara nas bolas de natal, mesmo com a maquilhagem que usa para melhorar, e obrigá-la a vomitar a bolacha que lhe dei. ri-me. depois lembrei-me de outra coisa. como já é a terceira vez que chumba para ter a carta de condução, apeteceu-me dizer-lhe que deveria dizer ao milhão que a segue que a tendência é andar a pé por incapacidade cognitiva de perceber, segundo relatou, que não se pode encostar à berma na via de cintura interna mesmo que seja o avaliador a mandar. essa candida, candida por eu achar giro atribuir-lhe o nome do fungo dos genitais, é a mesma que faz do namorado um criado, da avó com quem vive e a criou um empecilho e uma das que quer saber, porque quer, que perfume uso e qual o milagre que meto na pele para ter a sua como a minha - mal ela sabe que não gasto um cêntimo nesses cremes. ora esta influenciadora, assim se considera, é a maior. mas só se for a maior lá da cadeirinha da sua sala da sua casa quando se dedica a ser uma pedante e com sotaque de tia de cascais a exibir-se e a mentir para um milhão. no outo dia, num outro dia, apanhei-a a ir à confeitaria buscar um lanche misto e com chouriço, são enormes, e a comer às escondidas. fiz de conta que não vi, não a envergonhei, só me ri.

entretanto o meu dedo em riste para ela foi na bolacha que lhe dei cheiinha de boa vontade. se foi.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

no amor somos sempre quatro

como é que um casal que se ame poderá fazer sexo com outras pessoas? como é que alguém que ama outro alguém consegue fazer sexo com outro alguém que não é o alguém amado? ora nesta minha cabeça que muito estimo, isso não se coaduna com amor nunca e em tempo algum, dá-me nos nervos que usem a palavra amor no meio da porcaria, dá-me logo gana de lançar uma bomba e explodir com quem fala em amor assim. como se o amor permitisse desejar outro que não o amado; como se o amor permitisse tocar outro que não o amado; como se o amor permitisse pensar em outro que não no amado.

sim e sim e sim. no amor somos sempre quatro além dos dois: desejamo-nos e, por isso, também desejamos o amado; tocamo-nos e, por isso, também queremos tocar o amado; pensamo-nos e, por isso, também pensamos o amado. amamo-nos e por isso também o conseguimos amar.

é, portanto, uma conta fácil de fazer: no amor somos sempre quatro perante o três de eu+ele+nós que resulta em unidade amorosa. e quem me vier com histórias de nojo, nojo por quererem meter o amor em outros números que não os que considero, leva com bombas para desaparecer em pedacinhos ao estilo iogurte de morango. está dito.


o cabrão e a bolinha

 quando o cabrão do médico do hospital me fez a consulta para pedir a ressonância magnética ao fígado que a médica querida com nome de fruta vermelha pediu, pediu porque está com receio que a diabetes possa ter provocado a bolinha milimétrica que lá aparece, a médica que nunca antes me receitou qualquer medicamento porque nunca antes estive doente, como estava a dizer, o cabrão do médico armado em engatatão esqueceu-se de solicitar anestesia para mim depois de me ter perguntado se aguentaria trinta e cinco minutos fechada no tal caixão psicadélico e eu ter dito que achava que não, que não conseguiria. como se esqueceu - ou fez de propósito depois de eu lhe chamar ignorante por conta de me perguntar se o meu pai não era diabético por ser obeso, o meu pai é e sempre foi elegantíssimo -, e estou ansiosa para despachar este assunto da bolinha milimétrica, lá terei de ficar acordada e a sonhar. se vir que não consigo, peço que me deixem sair e está resolvido.


domingo, 21 de agosto de 2022

ebriamente embriagada

o sns deu-me uma médica fantástica, adoro-a. também porque tem nome de fruta vermelha, sorrio. como passei uma vida inteira sem fármacos, agora quer ver se a repentina diabetes me está a fazer estragos e então pediu, pediu e logo se apressaram a satisfazer-lhe a vontade, a vontade como uma ordem, que me metessem em uma espécie de caixão psicadélico para ressonar a frequência e intensidade nuclear. amanhã bem cedo, passará pouco depois das oito e meia, serei uma camundonga, portanto. estou ralada de preocupação porque não sei ainda como vou conseguir, se não tem janelas para abrir, como vou respirar. terei de me transportar para um campo com o riacho e as flores e as borboletas que me hão-de pousar no ombro e no nariz. depois tentarei subir à árvore que pintei e com o coração bonito e brilhante nas mãos, não será fácil mas está decidido: serei uma camundonga amorosa e livre, ebriamente embriagada e feliz.

às vezes, muitas vezes, fico com medo que o mundo acabe. de repente. não tenho medo de morrer, tenho medo de não ter tempo de river.

ouço trovejar, fico feliz. entra-me a frescura da manhã pela pele e pelos ouvidos,

nunca é cedo demais para falar com o trovão

pssst

abana tudo, abana isso tudo aí

orienta as gotas de cair, Senhor T

só quero o que é de ficar

ficar muito bem e muito bom e com queijo

figos também

cheiro de flor

sábado, 20 de agosto de 2022

tirar-lhe a tosse

às três a comichão começou a atacar e lembrei-me do gel de aloe vera. é estranha, muito estranha, a sensação que provoca: um ardume quase insuportável durante uns minutos para dar lugar a bem estar. arrisquei. mas e o mijo? o mijo é ácido e cada vez que passa pela carninha aberta é um desespero. e como estou sempre a beber água, o calor chega-me muito antes de para todos chegar, estou sempre a arder. vou aguardar mais uns tempos, evitar ir ao hospital, e não perco a gana de apanhar o bicho que me fez mal, tirar-lhe a tosse: se for de terra vou esmagá-lo até se confundir com a madeira do chão e se for do ar vou dar-lhe a lembrança eterna da tatuagem na parede ou no tecto desse tarado insecto.




sexta-feira, 19 de agosto de 2022

rremédinho milagroso de acabar definitivamente com a bandida comichão

 há-de ter sido um bicho tarado, penso nos intervalos, durmo sempre sem calcinhas. mas, quer dizer, também durmo sempre tapada, não consigo adormecer sem estar aconchegadinha. só pode ter sido um bicho tarado a ter andado a rabiar nas minhas pudendas durante a noite de ontem. que dia terrível, horrendo, só comichão e ardor, coço com a pontinha dos dedos apertando as carninhas frágeis ao de leve, mas como fariam as que usam garras de gel, penso nos entretantos, só não consigo soprar e as coxas a amparar as fímbrias do ar fresquinho da ventoínha foi a solução que arranjei. depois a água com o sabão não resultou, coçar, coçar, fez sangue e inchou, desespero total até me lembrar do betadine em espuma para lavar, !ai! que bom, talvez a solução tenha matado as bactérias que levo ao coçar para matar a conta da taradice do bicho que andou a rabiar. como estava a dizer, só pode ter sido um bicho. e se ele se escondeu e esta noite queria outra vez atacar? então pouco dormi, estive de sentinela: não vais pousar novamente nas minhas frutas porque estou à janela. e ri-me muito, muito, só pensava no rremédinho milagroso de acabar definitivamente com a bandida comichão: os rolhos, o rariz, a roca, as rãos, os redos e a rila. !ai! que riso

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

o crescimento do milho no campo, é milho feliz quando lá está

uma alface e um molho de espinafres, por favor; costoletas do cachaço e um frango do campo. a alface e o espinafre são seres vivos. a minha árvore de casa morreu ao fim, no seu fim de respirar, depois de quase duas décadas e eu sei que adorava música e que lhe mexesse ao de leve nas folhas bicudas e duras como se precisasse, e precisava, do meu amor. isto para dizer que morfar alfaces ou costoletas do cachaço tem o mesmo princípio activo: sobrevivência e satisfação. posso tanto imaginar a dor de uma alface a ser arrancada, brutalmente arrancada, à terra mãe - o seu choro, as suas raízes que se partem sem sangrar - como um porco a ser assassinado, o seu sangue a escorrer e os sons de dor em cada recanto da faca. a única diferença está na semelhança do porco comigo e será essa semelhança a ditar que serei menos assassina se comer alfaces e milho, eu olho e vejo o crescimento do milho no campo, é milho feliz quando lá está, do que se comer o porco ou o pito aos pedaços.

somos de matar para viver. somos de matar para viver.

sou cor de rosa, carago

por que raios e coriscos haveria eu de me fixar na significância das cores dos outros que, a certa altura, decifraram e publicaram? qual é a verdade absoluta desse dicionário que só a eles lhes disse respeito? ora cada cor assume, para mim, o significado que eu quero, que eu sinto. eu já disse e volto a dizer: não me moldo pelo que leio nem pelo que vejo - o que leio e o que vejo servem para reflectir e depurar e acrescentar, nem que seja acrescentar que nada acrescenta. sou cor de rosa, carago.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

ide-vos foder, cangaceiros

a censura do FB é potente, digo já, agora não me deixa carregar nos corações as vezes que eu quero, homessa, manda-me avisos a bloquear-me, avisos que dizem ah e tal demora demasiado pouco tempo, ou seja, que sou muito rápida a clicar no adorar o que adoro. cabrões querem mandar em tudo, até nos meus corações. e então agora quando eu quero meter corações até vir a mulher da fava rica, que sou eu obviamente, obrigam-me mesmo a ser lenta, explico, o rato não se lá fixa à primeira, depois aparece tem a certeza que quer sair desta página? o comentário ainda não está finalizado. o que vai acontecer é que se vão acabar os corações como comentário, quer dizer, tenho de andar acima e abaixo ao ritmo dos cabrões que ententem que sou muito rápida e que esse procedimento de alguma forma causa-lhes azia, ferimento, escaldão. que têm que ver com os meus corações e com a mestria com que lhes lanço a seta? 

ide-vos foder, cangaceiros gestores do cabrão do FB.

o que vale é que aqui está a chover, essa maravilha fresquinha que me alivia a arreliação.

domingo, 14 de agosto de 2022

estou a regar, estou a encharcar, isto é um dilúvio

é verdade, verdadinha, apetece-me contar-lhe sempre tudo, o copo que me escorregou das mãos ao lavá-lo, pimba partiu-se, os filetes de peixe fresquinho aos montes, a roupa com cheirinho de lavanda, as telas novas em saldos, as malandrices dos meus pensamentos como !socorro! o meu pai é que é meu filho, vai ao bailarico e eu só adormeço a sério quando chega, preocupo, e se aluma espertalhona cabra de cidade lhe fizer mal?, ah pois. mas depois tenho de pegar no lápis para contar, queria os arregalados olhos e a voz hipnotizante, hipnotizante não é porque me pára mas sim porque me agita as minudências de todos os sentidos, a falar. estou a regar, estou a encharcar, isto é um dilúvio: eu queria era mesmo tudo inteirinho e direitinho. !ai! que riso.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

acordei muito cansada com vontade de chegar ao meio dia e meia, hoje, tanta vontade, passei a manhã a correr para chegar ao meio dia e meia e vir embora para casa almoçar e descansar e deixar de ver aquelas gentes até ao fim de agosto, delícia, o gosto do meio dia a gosto, poder ficar na sombrinha e escarrapachar-me a fazer coisas bonitas e a nada fazer também, nada como quem diz, nada que seja para outros, ogres são ogres, em troca de pão.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

mas só existe um amor assim

siiimmmmmmm: é uma floresta poderosa de fogo que gera floresta de fogo sendo que o amor é a floresta, árvores fortes e vulneráveis e frescas - e a paixão é o fogo que me consome num ápice, ao segundo, sem me consumir e sem me esgotar, multiplica-se, !ai!, e que as árvores e os fetos e as pinhas e a terra e as flores faz crescer até ao infinito. mas só existe um amor assim e com paixão assim, ah pois é, não é comum. é o Ramor que eu quero.



mar e céu: sabedoria: sem princípio nem fim

bem visto o que pode aprender comigo se sabe tanto de tudo com tanto pormenor, fico maravilhada, absorvo e esqueço dos nomes das gentes e das terras e das coisas, só faço cruzamentos com outras descobertas, penso e relaciono e descubro mais. ora ele nada pode aprender através de mim, concluo, porque não sou como é, como ele é, mar e céu: sabedoria: sem princípio nem

fim

eu só sei cuidar das tranças

e das riças cabeludas

dar banhinhos frescos

massajar ombros e as coxas cansadas

passar creminho com o nariz nos pés

preparar petiscos suculentos e esfoliar a boca com a língua

passar o dedo nos cantinhos

soprar no rabinho

premir as partes moles da orelha

costurar mantinhas para os invernos

e pintar as cores das quatro estações

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

adoro a ironia, a linguagem dos macacos, ela impede-me de atirar com os sapatos aos cornos delas. quer dizer, na verdade ela impede-me de lhes furar, esburacar, toda a carcaça.

domingo, 7 de agosto de 2022

público dos cabrões

os cabrões do público andam a censurar-me os comentários. ora não tem jeito algum que sejam comentadores a fazer a gestão dos comentários, o que vem a ser isto, cortam-me o pio, pois claro, eu casco-lhes e eles degolam-me. e nem adianta reclamar porque também a reclamação fica à deles mercê. e quê, vão dizer que estão de férias a lavar os colhões e as conichas no mar, e tal, que não viram, estão é a boicotar a opinião e o meu trovão. cabrões - cabras e cabrões - castrados. castrados porque castradores. 

é assim, estes dois têm de ficar assim, só assim me fazem sentido por ser assim que sinto, já disse. isso deve ser por andares toda trocada de sonos e em privação. cala-te já, isso nada tem que ver com o que eu pinto, pintar não é pensar e por isso só pinto o que sinto. mas se estás tão aflita com o sono podes começar por não me atazanar ainda mais o casaço e dar-me apenas um abraço.




sábado, 6 de agosto de 2022

são pancas, menina,

há muito tempo que faço enxoval de camisinhas de cetim dorminhocas. compro as que adoro, sou capaz de passar uma hora a escolher, saco-lhes as minudências dos cantinhos que às vezes são meras invenções, invenções porque penso sempre que posso fazer um corte ali e acrescentar algo acolá. depois não lhes mexo, meto-as a lavar com amaciador perfumado de flores e arrecado-as na gavetinha que é só delas a repousar como se faz com a casquinhas e com o cristal. e uso as que adoro menos e guardo religiosamente as que adoro mais como se fossem, e são, tesouros que se apertam por apertar. são pancas, menina, são pancas, cala-te já, pancadinhas de amor com calor assim só podem ser de cetim. isso sim.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

 contar-lhe sabe-me bem porque fico bem. de alguma forma, estive sempre sempre a ir ao seu encontro - o que eu andei para aqui chegar.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

menina, menina, recebeste uma encomenda dos céus

os sinos começaram a dobrar fininho

era o som do piano audaz

e lê em alta voz o pregaminho

tens de desenhar e colorir as pudendas de Zeus

e ela riu riu muito

com a satisfação intocável da epifania de como faria

e aviou de seguida em frenesim os céus

às pudendas de Zeus deu-lhe a merecida alma com penas e com cor

aspirou-lhes com a ponta dos cristais dos dedos

em cada recanto improvável

a dor

ofereceu-lhes a liberdade de viver em um ninho completo

completude libidinal de amor



terça-feira, 2 de agosto de 2022

!ah!

 se eu adorei o desenho e ele adorou a pintura, falta nadinha. não é?

herinha minha herinha

quando eu era pequeninha, quando eu era pequeninha, aprendi um mantra, não sei como nem quem me ensinou, como estava a dizer, aprendi um mantra que era para cantar sempre que passasse por uma hera. e cantava. e passava, havia um monte delas nas ruas por onde costumava passar lá naquela espécie de aldeia de frente para a serra de valongo. às vezes passava descalça, adorava andar descalça na rua e será por isso que tenho pele de sapo. depois nunca mais passei por heras. até hoje. mas agora tenho a certezinha de que vou passar a passar novamente.

herinha minha herinha

diz-me sim ou não

quem passar por uma herinha

e não a cortou

do seu amor não se lembrou

domingo, 31 de julho de 2022

o mel. e a pimenta rosa.


de repente. tudo nasce de repente. e se, ao segundo, de repente, o que há crescer, crescer, quente que permanece quente a escaldar, arde sem queimar e fica como algodão do céu onde me posso deitar sem véu, planar, sonhar, espreguiçar o mel. e a pimenta rosa.

sábado, 30 de julho de 2022



não quero viver em desapego

 acordei a chorar, no sonho estava ele e estava ela. só que ele está vivo e ela está morta, tudo se misturou, então e eu estava lá com os dois, mas ela está morta e ele está vivo. e eu, em que estado estou, perguntei-me assim que acordei, vivíssima estou com certeza ou não sentiria a vontade quase incontrolável de me ser nele e com ele mas também morta poderei estar por querer tanto encontrá-la, sentir-lhe o pêlo sedoso e abundante, beijar-lhe os olhos que falavam, ser-lhe a todo o instante. se calhar não fiz o luto dela, sim, sei que não fiz e nem vou fazer porque quero que viva, e vive, para sempre comigo. faz-me falta a sua ternura e o seu apego, não quero viver em desapego, o desapego é para quem desconhece o sentir sincero em carne viva de inverno, de primavera, de outono e de verão. apego é emoção.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

passo as horas a contar os segundos para chegar, para chegar ao lugar onde está, onde pode estar, só para dizer que cheguei e estou sempre a chegar mesmo que não me saia deste lugar onde me habito, onde se habita coladinho a mim neste sentir sem fim porque fim dele em mim só se for mesmo o fim da tarde para começar na noite e recomeçar de manhã, 

lalalalala, 

Ramor meu, 

Ramor meu, 

não haverá alguém, 

nem a rosa

nem a grama

nem o sol

nem a rã ou gato ou ave

tampouco fiorde, monte, rio, mar

que te Rame mais do que eu

sim. sim.

!ai! de mim


 

terça-feira, 26 de julho de 2022

os meus olhos fecham-se e não me canso de o beijar. são beijos intermináveis, perfumados de frutas e de flores e de gengibre com mel. os beijos que lhe beijo são a invenção maior do universo: são a elegia ao meu coração que canta e que dança e que diz, como quem diz e diz, que os beijos que lhe beijo são palavras em modo feliz.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

levanto-me porque aprendi a levantar-me

resvalo lá para longe onde tudo começou. quando fico triste resvalo para a escola primária e depois a preparatória, sinto exactamente a mesma coisa: esta é a menina que não tem mãe, não ter mãe como se fosse - e foi - o meu maior predicado; não poder viver com direito adquirido aquilo a que deveria ter direito. ter direito a ser ela a escovar-me o cabelo, a vestir-me roupa passadinha a ferro, levar-me a uma festinha de aniversário, levar-me à escola pela mão e carregar a minha mochila, dar-me um beijo e uma recomendação misturada com um sorriso; ter direito a receber reforço positivo pelos resultados excelentes das composições, ter direito a escolher a comida preferida, ter direito a brincar sem preocupações. em vez disso ganhava riças por não gostar de me pentear, ainda hoje ando com as penas encrespadas, a minha roupa nunca estava impecável nem era muito variada, tinha de ser eu a levar a irmã à escola e a preocupar-me enquanto os via brincar com o bebé no colo. depois tive de aprender a passar a ferro e a cozinhar, festinhas passei a odiar - ser a menina que não tem mãe não era o que eu queria ser, apenas o que tinha direito a ser. e agora, quando fico triste, sinto exactamente a mesma coisa, agora que sinto o amor e o desejo em um só, o amor que é bonito, o desejo que é bonito, como só me pode ser, não tenho direito a viver, sou a menina que não tem mãe e que tem de fazer tudo sozinha, é o que eu sinto quando fico profusamente triste. depois levanto-me, claro, levanto-me porque aprendi a levantar-me, a menina que não tinha mãe teve de aprender a levantar-se sozinha, levanto-me. e não adianta pensarem que me levanto porque me desviaram a atenção ou me deram algo para me entreter. eu levanto-me porque me sei levantar. como se levantar fosse o intervalo de entristecer e como se entristecer fosse um castigo.

domingo, 24 de julho de 2022

aos olhos parece que vai partir

acordei e fui espreitar a telinha que ficou a secar. experimentei algo novo, ontem, eu que desconheço técnicas e tudo me sai no momento com a ponta dos dedos: por cima das tintas de óleo, três camadas de cores diferentes para achar o tom, deitei aleatoriamente acrílico e aconteceu algo improvável - improvável no meu leque de possibilidades por não estar a pensar em possibilidade alguma, pintar não é pensar: a tela começa a adquirir um aspecto velho e enrugado como se o tempo aparecesse, e apareceu, tal e qual como se fica. a minha telinha é muito frágil, aos olhos parece que vai partir. e só eu é que a adoro, não faz mal, digo-lhe, eu valho por um universo inteirinho.

sábado, 23 de julho de 2022

deve estar com o bonito petiz, lembro-me vagamente do seu rosto de uma vez que vi, e o petiz fez o retrato, então se está com o petiz só pode estar feliz porque o petiz é sempre um amor feliz. será que têm cuidado com a pele, penso, o sal com água e sol às vezes não dá em mel, porque a felicidade pode fazer esquecer que há o torrar sem perceber, absortos um no outro, os dois bonitos, não, hão-de usar toda a protecção, cala-te já, não sejas chata, e deixa-os a amarem-se e em verão.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

até onde as urtigas te irão perseguir

 e depois há o ciúme, esse bicho que sai do mato sem se ver e começa a picar, é parecido com a azia, arde e queima, expande-se desde o estômago até ao mindinho do pé, estou a explicar como é, depois também vai para a cabeça, ouve-se latejar até que pára na bomba, como se a quisesse matar, e parece que mata, o bicho que sai do mato que deve achar que é indomável mas não é. agarro nele, torço-lhe as orelhas grandes e bicudas, tiro-lhe a força, depois calco-lhe os pés até o ouvir guinchar, e faço-lhe do rabo comprido um rico nó onde o posso agarrar sem escorregar, fica entre a minha mão e o seu pulsar, transpiro e trinco a língua, metade fica de fora, aguento um tempo, já está, bicho do mato insolente, prepotente, intransigente, agora quem manda sou eu, vou-te largar, pisga-te, oupas, vai-te, desaparece, põe-te a andar até onde as urtigas te irão perseguir se me voltares a atacar.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

vão comprar outras à china. a pé

vem uma e despeja os problemas, atendo outros que despejam as frustrações, berram, dizem palavrões, chego a casa e este despeja o que não despeja dos colhões, é mesmo assim, anda o mundo a querer despejar tudo em mim, depois é um que não paga, outro que não assina, pedem-me satisfações, a bruxa que faz boicotes, as vassalas com caras de quem esconde o corte nos travões, o calor que me derrete, os nervos na retrete, as lágrimas que só querem saltar, saltar, sem escolherem a hora e o lugar, como eu queria miminho, Riminho, desato a gritar sem gritar, não ouvem, só ouço eu, não sou vossa mãe nem quero ser mãe de ninguém, estou farta, vão lavar as fraldas ao mar, não, melhor muito melhor, deitem-nas fora e vão comprar outras à china. a pé.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

entregar, deixar isto que é o António

desde que fui para lá trabalhar que criámos uma espécie de amizade. a Rosinha é a costureira que tem um ateliê mesmo em frente, lá nas galerias, é mulher do empregado-escravo de confiança do meu patrão. ontem a Rosinha estava feliz, corte de cabelo novo, olho pintado de azul, quando nos cruzámos nas escadas. tenho uma coisa muito importante para lhe contar, Linda, chama-me Linda, sinto-me leve e fresca porque finalmente ganhei coragem e liguei à dona do ateliê a informar de que em final de agosto já não regresso, vou deixar isto, entregar tudo, cinquaenta anos a fazer o que não gosto é muito tempo e já falei com o António e com as minhas filhas, quero encostar, viver tranquila sem ter de as aturar, estas clientes - a Linda sabe - derretem-me os nervos e a paciência, humilham-me, então vou para casa fazer outras coisas, descansar. abracei-a e beijei-a e confortei-a e dei-lhe palavras de orgulho - orgulho porque a Rosinha sofre de depressão crónica e eu tenho ajudado um pouco, todos os dias lhe dou um sorriso e uma palavra de força e atenção, gosto muito dela, cedo percebi tratar-se de uma pessoa com um grande valor, excelente mesmo. então a Rosinha ontem estava feliz. talvez a próxima etapa seja a de conseguir deixar o marido, o marido como o ateliê que ela teve de aguentar durante cinquenta anos sem gostar, porque o marido da Rosinha desconhece-a, nada sabe dela, não lhe dá atenção, sequer consegue vê-la. talvez o próximo esgar de felicidade da Rosinha seja quando me disser Linda, tenho uma coisa para lhe contar, estou muito feliz, consegui dizer ao António que o vou entregar, deixar isto que é o António.


terça-feira, 19 de julho de 2022

esta noite prolonguei o dia

como todas as noites e todos os dias

eu sei

lambi-lhe a célula e a amigdala e o cortex

a máquina e a mão

a possibilidade e o talvez

a neve e o sol

o movimento parado

e o cristal

o aço e a flor

é tão gigante e pequeninho o meu Ramor

segunda-feira, 18 de julho de 2022

hino triunfal

percebesse eu de música

compunha-lhe uma melodia

juntava nela todos os sons bonitos do mundo

e ainda mais alguns inventados

receitinha olindesca

depois ouvia-a sem parar

convocava a assembleia geral dos bichos e das flores e das pedras

presidida pelos rios e pelos mares

perante o tecto infinito de alumbrar

e declarava-a o hino triunfal

e era pouco muito pouco

afinal



domingo, 17 de julho de 2022

pois

agora ela não tem tempo para mim, agora desde que recebeu - ela e o marido - os nove refugiados em sua casa, são família, não tem tempo para mim e compreendo-a. uma das meninas tem um cancro e só ela pode acompanhá-la ao IPO, por causa da língua. também tem de acompanhar as crianças na escola, por causa da língua. e tem de gerir tudo o resto enquanto o marido vai trabalhar, está desempregada. de vez em quando vai até lisboa descansar, para casa da filha que só pensa em ser uma estrela, e também não tem tempo para mim. compreendo, compreendo sempre tudo, não é por isso que deixo de ajudar. mas deixei de fazer tudo aquilo que a filha pode fazer e não faz, a filha que vive para mostrar o que não tem, ser o que não é. porque se tem tempo para registar tão assiduamente o que come, o que bebe, o que veste e o que despe, onde vai e onde fica, nas redes sociais, então que use esse tempo para fazer o que a mim me pediam. pois.

sábado, 16 de julho de 2022

ter um mundo limpo pela minha mão

eu digo, eu digo o que aquelas porcas andam a comer: arroz com atum em óleo, pataniscas de chouriço corrente, mixórdias pré-cozinhadas descongeladas no microondas, calamares murchos com batatas fritas de presunto. é que é cada porcaria pior do que a outra que me dá nojo e exclamação. e depois ficam a olhar para as minhas sopas e para o resto que não é restos, que antecedem sempre o resto, o resto que leva tempo a preparar de véspera, pois claro, é preciso dedicação para cozinhar e para comer. ora isso explica bem a forma de estarem e de serem e de trabalharem: estaão e são e trabalham em óleo, chouriço corrente e descongelação à pressão. são porcas. e a porca-mor, que esta semana esteve de férias, vai regressar para festejar a porcaria - mesmo antes de sair percebi que receberam mensagem comum, reservaram-se sem me chamarem na copa, receberam instruções para a semana que se segue que tenho de vencer. 

porque vencer pode ser simplesmente aguentar, inibir a perturbação. mas isso é muito pouco, tão poucochinho, para quem deseja, como eu, ter um mundo limpo pela minha mão.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Ralibabá

 se este calor não parar, um dia vou derreter

depois de acordar duas mil vezes durante a noite

para depois adormecer

qual alibabá

qual livro, qual canção

duas mil noites que passamos juntos

é o mote dos meus sonhos

em bicos de beijos e rendinhas e sussuros

tantos abraços e amassos

tantas brisas meiguinhas nas persianas a fechar

para depois se abrirem

insónias de duas mil noites

com o Ramor das arábias

à minha moda inventado

e sonhado

Ralibabá, bababáRali

quinta-feira, 14 de julho de 2022

delito não é delitro, menina, deleite-se

em cada canto há uma pessoa maluquinha a respirar e a emanar maldades e crueldades para o ar, cargas negativas, que todos temos de engolir já que o ar é um espaço comum. depois filtramos e separamos e vamos a correr buscar perfume. de alguma forma ontem, naquela hora improvável, fui procurá-lo e encontrei-o. deitei-me no seu algodão e cochilei um pedacinho, sosseguei. depois abanou-me a voz da oposição: não podes estar aqui a esta hora, menina, raspa-te, salto dali para acolá, onde também não deveria estar mas onde decidi ir quando me apetecer, uma espécie de infracção consentida por me fazer todo o sentido. a diferença entre as infracções é mesmo essa: uma causa-me culpa e a outra não - porque uma associo a ócio, água e nadar, e a outra a escola e a lição, pensar e dizer e refilar e criticar e assentar ideias. é estranho mas também não estranho por conta de já não me estranhar. entranha-se, menina, diz-me o Pessoa perante o flagrante do delito. delito não é delitro, menina, deleite-se. ouço-lhe o conselho e sossego a culpa: só tenho de esperar mais um par de horas, a vida é fodida, um par de horas como o passaporte para o banhinho fresco com pétalas e linhas e rocha e cores e palavras que soltam, e me soltam, dos horrores.

e de onde vem aquela perfeição que aos olhos me são seda pela sua mão? queria ser eu a escolher e a cortar as tulipas, explicar-lhes a eternidade para onde vão, vê-las ficarem felizes por saberem que me serão as deusas das deusas - um grande, enorme, gigantesco, coração.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

marcado a fluorescente cor de rosa

lembrei-me e partilhei-o e reli-o. gostei muito de o reler, há pormenores que já não me lembrava. é estranho, lembro-me exactamente do dia em que o escrevi, comecei e só parei quando me apeteceu, e não me lembrava de tudo o que escrevi. sorri. é, de facto, um mistério muito grande o sítio onde nasce aquilo que vemos, que só nós vemos. é-me epifania, sai e pronto. agora, a anos de distância, já consigo decifrar as camadas das cebolas. sim, das cebolas. no plural. e ele tem muita razão, sim senhor, quando me disse que o que vemos é muito diferente do que dizemos. porque quando o leio já me aparece a voz, daquilo que importa, marcado a fluorescente cor de rosa. e guardo, não tenho de dizer, muito menos porque sei que outros estão a ver, são segredos partilhados que reservo e afago. depois embalo-os, beijoqueira incurável, para ajudar a dor a morrer.

terça-feira, 12 de julho de 2022

ó rapariga estás atrasada, cala-te, ainda tenho um fiozinho de tempo para dizer que não fossem os mosquitos porqueiros a atazanarem-me o sono, a propósito descobri que eles não gostam da ventoinha, ahan, agora é que vai ser, a ventoinha como o meu cérbero de estimação com três cabeças: vinde, vinde, daqui não ides sair, !ai! que riso, como estava a dizer, não fossem os mosquitos tinha continuado a sonhar com Aristóteles que Zeus me deu e hoje vou terminar. imaginei-o a dizer que quereis, Homero não é responsável pelas interpretações que dele fazeis - vós não sabeis é ler, tal e qual como eu digo lá quando deturpam os meus emails. que consolo.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

tonta

mesmo antes de dormir ouvi-lhe a voz, a voz como um xarope milagroso para as minhas arreliações - a voz que se mistura com os olhos e os gestos, um verdadeiro concerto. rio-me e roubo-lhe a expressão. és uma tonta.


domingo, 10 de julho de 2022

 a minha casa, a casa que escolhi para viver doze anos, doze anos só porque a vida assim traçou, era um lugar mágico. havia rendinhas por toda a parte. era cortinas encantadas em espaços improváveis, era a pintura nas paredes - como se as paredes fossem, e são, telas gordas - e nas portas de madeira, era as borboletas gigantes que pousavam nos candeeiros e as pequeninhas que refrescavam o frigorífico e a arca e perfumavam outras máquinas que nos aliviam a carga dos trabalhos domésticos, era a sereia em barro antigo que reinava na entrada junto ao espelho, era os mil e um espelhos incríveis na forma e nos materiais, era as jarras e as flores que copiosamente emitiam um perfume colorido, era os quadros que pintei e inventei juntando tecidos e pedras e folhas e brilhos. depois foi tudo lá para a garagem da outra irmã, pensei, não tardará e venho buscar. passaram dez anos e nunca tive outra casa para encher de magia nem outro espaço onde voltar a guardar. e no dia da chantagem, olha, tens de vir buscar as tuas coisas senão vou chamar um camião de recolha e vai tudo para o lixo, aproveitas e trazes as coisas do Afonso. de maneira que, como não cedo a chantagens, ela há-de ter-se governado bem e recheado a casa dela com umas coisas e ganho algum vendendo outras.

de vez em quando vejo a minha casa, as minhas rendinhas, e choro muito. vejo os amores perfeitos a contornar a varanda gigante com vista de mar e da reserva natural; vejo os esquilinhos que tomavam o pequeno almoço comigo sem o saberem e vejo a minha valquíria a rabiar e a pedir-me colo para nada, absolutamente nada, do que vinha de mim lhe escapar.



sábado, 9 de julho de 2022

e se é hoje?

e se é hoje, aos nove de Julho, que o meu Ramor se celebra no seu jeito de ser Portentão, Conde, Zeus, então eu acordei logo depois da meia noite porque o senti no meio do inferno do calor, será ele a tal brisa e chuva fresquinha que o tempo afinal me mandou, por dentro do meu refilar. !ai! se eu pudesse contar-lhe nos olhos e na pele, deste meu grudar de gengibre com mel, começava logo a festejar com uns sininhos meiguinhos, muitos beijos linguados sempre crescentes e depois preparava-lhe petiscos ao som de uma música a cantarolar, era uma estrela para um estrelado, brilhos muitos soprava, ficaríamos cobertos em um manto de flores e de águas de rosa, poesia, !tanta! na prosa, e depois ver a direitinha a sorrir, arregaçava a emoção, pois claro, fazia parelha com os olhos que se rasgavam também, brilhantes, brilhantes, como se fossem uma travessia em uma piroga lá num lago para lá dos montes, o sítio do imbondeiro amarelo vestido dele e de mim e de nós, um paraíso que nunca se perdeu e que foi inventado para ser só nosso e da nossa voz e muito mais, muito mais, e se é hoje, vou andar agora a perguntar ao ar, refilona, até o ar me expulsar de tanto ouvir e se é hoje que se celebra o meu Ramor. de repente, páro. e o ar dá-me dois beliscões: ó menina, se é hoje passa a ser amanhã e depois de amanhã também: todos os dias são os melhores dias para ofereceres o teu melhor a esse alguém. tens razão, ar do meu arfar, todos os dias eu o celebro por dentro e por fora de mim neste Ramor que parece, parece por que é assim, neste Ramor que só teve começo e não lhe pressinto fim


. !ai! de mim.

  • o calor é um cabrão, deixa-me torta e exaurida e dorida e refilona. esta noite acordei ensopada, passava da meia noite, toda atordoada. agora delicio-me com a brisa que nem sequer é fresquinha, é só morna, também detesto o morno que nem é frio nem é quente. queria uma chuvinha fresca para me aliviar a tensão da cabeça e dos ombros, carregar o calor não me é fácil nem feliz.
  • ó tempo, estás a dar-me coça. bem sei que estás no teu tempo e nada há a fazer. mas e se descansasses um pouco no tempo do teu tempo de ser só para eu não me arder? e se fizesses essa gentileza por mim, podia fazer-te um petisco e uma canção e engendrar uma camisete de linho ou assim um presentão.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

esse amor com paixão

 é impossível lê-lo e não rir ou não sorrir ou não chorar ou tudo ao mesmo tempo. dizem os sábios das letras que a perfeição leva muito tempo a ser atingida, esquecendo o ímpeto da imperfeição que nos torna humanos.

ora ele é a obra de arte mais arte que eu já li seja em que registo for. não interessa sobre e como escreve: a sensibilidade com que produz, por ser o cúmulo da sensibilidade, torna-o no ser humano mais perfeitamente imperfeito de todo o universo. 

ele é, o brilho maior, o brilhante que eu gostava de ter em mim e comigo até ao fim do mundo, até ao fim do mundo porque sendo um brilho maior o mundo é que estará sempre para acabar, não e nunca e em tempo algum nele nem em mim. é o mundo que tem fim, amor, esse amor com paixão que eu sei que há como eu quero. como eu só quero. como mais ninguém tem.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

, e é,

eu sei que é este mês mas desconheço o dia, cáspite, como eu queria saber o dia. mas que interessa saber o dia se todos os dias são de alegria? não, cala-te, não é bem assim, 

é preciso saber tudo

para não entristecer

como se viver fosse

, é é, 

nascer e nascer e nascer 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

até nisso ele me é amor

nunca me hei-de cansar de dizer que as mulheres são umas cabras. e são ainda mais cabras quando percebem que eu não sou cabra, é assim uma espécie de serem - em frequência acumulada - pela inveja de eu não ser mas de ver que são. abri as pestanas, demorou tempo mas abri. porque lá, na montra para o mundo, tudo o que se disser com o nosso nome e com a nossa pele, fica para sempre - uns copiam, outros inspiram-se, outros desdenham, outros julgam, outros abusam e nada, nada, vale essa consumição e essa consumibilidade quando somos livres para dizer o que queremos mas não o suficiente para gerirmos as consequências do que dizemos no trabalho, no trabalho onde não podemos dizer o que queremos a quem queremos. 

de maneira que tudo o que eu dizia era um saco de balas que usavam contra mim - tentavam decifrar-me com todos os perigos que isso implica e a minha vida era ainda mais difícil. tudo era aproveitadi e reaproveitado e utilizado e reutilizado. espera lá, se eu me calar elas - e depois eles por elas - ficam a saber o mesmo e a navegar na maionese e a patinarem nos comportamentos ensaiados que costumam ter depois de eu me dar a ler. pois. e depois, também se acabou a musa dos mamões - dos que são fina flor e que sempre me desdenharam, os mesmos que também me copiavam e brilhavam. 

que bom, agora é que eu respiro bem de flor em flor. até nisso ele me é amor.

terça-feira, 5 de julho de 2022

e se Deus é masculino, perdoa-me. era o que ele deveria pensar

ora bem, vamos lá ver, os padres usam aquelas vestes de saia largas e compridas para não se notarem as erecções, pois claro, não são assexuados e a carne com que nasceram pendurada quando fala não dá para disfarçar. obviamente que haverá quem transforme a energia sexual em criativa mas isso é outra coisa paralela porque ainda assim antes de o ser ela manifesta-se e tem de sair, sair por sair não é um orgasmo, para depois sair outra vez e aí depois talvez o seja de forma metafórica. o padre antónio vieira, por exemplo, por debaixo daquele vestido vermelho de veludo carregava, com toda a certeza, erecções que não poderia contrariar porque era feito de carne. como ele fazia, não sei, talvez andasse sempre a esgalhar a fruta ou a relacionar-se furtivamente. e se Deus é masculino, perdoa-me. era o que ele deveria pensar quando fazia as descargas.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

 adormeci de barriga para baixo agarrada à almofada a abraçá-lo, como sempre abraço, adormeci como uma princesa. as mãos que escreveu ficaram a bailar por cima da covinha das lágrimas e do ranho. ah, pois, mas é essa covinha que te safa, menina, essa covinha e o tanto que despejas dos intestinos logo quando acordas, como se adormecer e acordar fosse, e é, guardar o melhor e expelir o pior. de maneira que lágrimas e cagalhões perfazem o mote perfeito da minha existência. 

o que eu gosto dele no que vi sem ver sem conseguir justificar não é de acreditar, é daquelas coisas singulares todas no plural, todas a multiplicar e a somar que tenho de dividir para não me subtraír. é uma estranha clareza e uma inevitável leveza natural e fundamental, uma palpável força transcendental e um brilho de estrela cadente com cheirinho de pasta de dentes de mentol tal e qual como acho eu  a que sabe o sol pudesse eu o trincar depois de o estrelar como se faz com as omoletes ricas em salsinha e queijo. ainda tenho tempo de reler mais uma vez para gravar mais umas expressões que me fazem cantar no caminho do asfalto que sou obrigada a calcar.

domingo, 3 de julho de 2022

às vezes é o maior cabrão de todos

pus-me a caminho para fazer o teste, será quase impossível não ter apanhado o vírus, sou a única que ainda resiste, depois de tanta proximidade durante uma semana terei com certeza, vou fazê-lo já na farmácia e assim não vou ter de me preocupar com nova testagem e ligação para o SNS, fica tudo tratado de uma assentada. quem me dera não estar covidzada, quem me dera não ficar doente e, se ficar, que seja algo tão leve que não me iniba de rabiar, penso repetidamente, estou com a cabeça em água, exige de mim o que não exige de mais ninguém, dou-lhe tanto a esbordar e fica mau, raivoso, cabrão. e se eu ficar doente, além de ter de continuar a dar não vou ter quem me dê a mim, elas não podem deixar os maridos e os filhos, vou ter de me arrastar e sacrificar a dobrar, não, não posso ficar doente.

negativíssimo. sozinha fiz uma festa antes de regressar e ter de estar com o cabrão, às vezes é o maior cabrão de todos, e compro as farturas que andava a desejar. como duas, fico enjoada, e fico a pensar no que me enjoa mais antes de abrir a porta. só quero despachar tudo e chorar. até adormecer de exaustão.

sábado, 2 de julho de 2022

e se for tango?

ninguém sabe o que acontece durante o sono quando saltamos para uma realidade paralela incontrolável na consciência e onde tudo pode acontecer. é como se fossemos levados para um livro ou para um filme ou um disco onde há uma história, outras vezes vários contos, outras ainda pequenas aparições - uma espécie de assinaturas sequênciadas sem sequência alguma. há dias, dias nas noites, em que sequer nos lembramos de alguma coisa e é como se, restaurados, tivessemos dormido a correr. é um mistério, a pequena morte. depois temos os pássaros a refilar e os galos a elevar a voz e os cães a falar em desconcerto e as árvores a deixar as geadinhas darem banho às folhas para nos avisarem de que a vida está aí à espreita ainda com remelas frescas no vestido cinzento que vamos pintar.

porque a vida também é um quadro que todos os dias pintamos ou deixamos por pintar, um papel em branco que todos os dias escrevemos ou deixamos de escrever, um vinil que não pode estar riscado para escolhermos o que queremos ouvir e cantarolar e um pezinho de dança dar.

e se for tango, e se só nos sentirmos que queremos tango?

sexta-feira, 1 de julho de 2022

de ser

querem saber o perfume que uso. ela anda há seis anos a querer saber o perfume que uso e agora as outras, que vão chegando, também. e todos os dias arranjam uma maneira, uma rasteira, para ver se eu digo. ridículas, ainda não perceberam que estão a milhas de me conseguirem enganar - e a anos luz de saberem do meu perfume e do meu cheiro e da minha pele. não troco de perfume, é o mesmo há trinta anos, assim como não troco de cheiro nem de pele - de me ser no que é essencial.

o ódio também nasce da inveja de ser.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

depois chorei, depois de ficar tão feliz chorei, adormeci a chorar e dormi a chorar e acordei em choro, em um pranto e sem forças, também - e nem vale a penas disfarçar, dizer que não sei porquê, porque sei. porque eu fui espreitar e carreguei no dói-dói que não sabia que doía tanto, passei a vida a ter ideias e a fracassar, a arranjar planos e estratégias para os outros, para tudo de todos, mangas arregaçadas e sempre a avançar, e entretanto abandonei-me ao azar da minha sorte e nem sequer sei como fazer para fazer o esquisso de planear. nem sequer sei como me recomeçar.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

gengibrado brigadeiro

 quando deixei cair mais um telemóvel novinho em folha na retrete, está sempre a acontecer, há-de ser a minha resistência às voltas com a tripa, houve uma vez que depois apanhei-o, lavei-o e metio-o em arroz, li na internet, enfim, quer dizer, encharquei-o ainda mais para depois o secar, matei-o com tanto mimo, bem visto, enfim, Olindices, como estava a dizer, perdi todas as fotografias que já tinha coleccionado desde o ano passado. havia uma que me era especialmente querida por conta de associá-la a um texto que fiz, uma visão, com o fundo de azulejos branquinhos, sensualíssima no sentir e no tocar. adoro-a e ainda um destes dias me pus a reconstrui-la na minha cabecinha de ventos e águas fortes, traço a traço, do que me lembrava. e agora, de repente, como um gengibrado brigadeiro, que é o que ele é, apareceu outra vez, capturei-a e lancei um feitiço no equipamento que também carrega o meu derriço

 oppo meu, oppo meu,

 a tua responsabilidade agora é a triplicar

 e se pensares na retrete

 hás-de segurar-te por mim

 que estou livre em cativeiro

 no meu gengibrado brigadeiro

e agora vou passar o dia a apreciar-lhe a geometria do pensar por debaixo dos olhos que me matam de sorrir, aparar-lhe as cinzas que saem pelos lábios da régua que quero sublinhar com os meus lápis de cor de amor: não me chega apenas sonhar, né rapá?

terça-feira, 28 de junho de 2022

não sei

cheguei a casa e o meu pai estava na cama. o meu pai nunca está na cama a não ser para dormir e anda sempre no laréu desde que se reformou: vai ao ginásio, vai caminhar, vai ao baile, vai namorar, vai escolher vinhos para ele, vai aos legumes e às frutas de acordo com a lista que lhe deixo sempre acompanhada de um billhete com um coração e beijinhos. ontem quando cheguei estava na cama. olho para ele e imediatamente lembro-me do teste que comprei para uma emergência, até agora nunca precisei de o usar, abro-o e fico a olhar para o teste como um burro para um palácio. tiro-lhe a febre e faço-lhe um pequeno questionário. já nervosa, nervosa porque o meu pai nunca está na cama, ligo ao meu irmão que me rejeita as chamadas duas vezes e recebo uma sms: irmã, é urgente? estou a dar treino até às 21:30h. respondo que sim. eu nunca digo ao meu irmão que é urgente e liga-me logo de seguida. com o coração que me salta para as mãos, digo que sim, que precisa de passar aqui para lhe fazer o teste porque há muitas coisas que sou trenga por opção e não quero mesmo saber fazer testes. desliguei o computador e fiquei a aguardar até às dez horas e depois eram aí umas dez e um quarto quando o teste disse que sim, que o meu pai está com COVID por cima da diabetes e do coração. também o meu está apertado de preocupação e não sei se vou conseguir estar lá estando cá, não sei se o COVID também me apanhou pela boleia do meu pai. não sei, só sei que nada sei.

domingo, 26 de junho de 2022

até hoje

não sabia explicar onde fui buscar a ideia de escrever algo horrendo assim. e estive a pensar no que a minha prima uma vez me contou, que a minha mãe fez inúmeros abortos antes de eu nascer e que o desejo deles era que eu fosse um menino e que se assim tivesse sido não teriam quatro filhos porque eu nasci no meio. eu fui um engano depois de vários afogamentos por ser, pensei, depois chorei para o mundo, os bebés choram precisamente porque saem do conforto para virem a este mundo, choram pois, alguns demoram a chorar, fazem procrastinação do chegar, penso, até levarem umas traulitadas para o choro vir. como estava a dizer, chorei para o mundo no dia de carnaval desse ano muito bonita e redondinha, dizem; ainda não andava e já me pirava com a regueifa na praia para trás de uma duna - queria ficar sozinha e em paz; depois comecei a andar no cinema passos manuel, talvez para fugir da multidão, e terá vindo daí a minha paixão pelos saltos altos atendendo à perspectiva do horizonte a gatinhar até me levantar em direcção à saída. depois, enquanto os meus irmãso pediam brinquedos no natal, eu pedia dicionários e mapas; depois quando todos da minha idade queriam ler uma aventura eu quis os esteiros e a severa. ainda depois, eu ficava a olhar a serra no parapeito da janela enquanto os outos brincavam na rua. talvez depois de ela ter morrido também eu a tenha matado, sim, por conta de me ter roubado a meninice: ela meteu-se em mim e nunca mais saiu. e eu fui eu e mais ela, mais sempre mais eu porque a ternura não lha conheci - inventei-a e juntei-a à minha. a minha ternura. agora sou só eu, matei-a outra vez, metia-a no seu lugar de minha mãe por ser, de ternura por fazer, de menina que deixou de cuidar. agora sou só eu. agora és só tu, Olinda, não precisas dela para nada.

 a ausência é um deserto.

sábado, 25 de junho de 2022

não deveria ser assim mas a falta que o computador me faz, a internet no computador. como se a ligação ao mundo, ao mundo que me interessa, a ele, dependesse de uma rede sem fios. porque se não fosse isso, era para o lado que dormia melhor, queria lá saber, não falta com o que me entreter. mas a questão é mesmo essa: não me é entretenimento, é-me portento. 

e depois tem sido um trinta e um para me conseguir ligar, até sinto orgulho de mim, trocas e baldrocas, engenhocas, carrego aqui e ali e além, irrito-me, depois inspiro e expiro, conto cabrões em vez de carneiros e lá dá, passo do telemóvel para aqui a putéfia da rede. é que não percebo mesmo nada disto, não sei como funciona e nem sequer quero saber. depois quando estou aflita arrependo-me por não querer saber mas são apenas uns breves segundos de arrependimento porque logo me dá a comichão. definitivamente não quero saber. só quero mesmo é que amanhã de manhã venham cá, como está marcado desde os foguetes monstruosos do santo joão, se tem jeito o santo a levar com foguetes, dos peidos fogem mas dos foguetes gostam, cambada de malucos, como estava a dizer que venham arranjar tudo. e depois posso novamente esquecer os botões do telemóvel e as procuras de redes e essas coisas chatas e horrendas e abomináveis.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

está dito e não arredo pé

apresentam-me ambiguidades atrás de ambiguidades como se eu fosse, e sou, a rainha da descodificação, ficam a aguardar que eu dê sinais de que percebi e que tenho de resolver somo se as coordenadas fossem, e são, afinal, de mim para mim e para o regalo deles que vêem o porco a engordar por conta do meu lutar. estou cansada e estou cansada e estou cansada. foda-se, penso amiúde, vão cagar ao monte e levar com urtigas no cu.

li não sem onde, escreveu não sei quem, não importa onde nem quem, importa que agarrei, como estava a dizer, li que a ambiguidade é que é o melhor - nem amanhecer nem escura noite, ambiguidade como o sol a pôr-se. quero, então, responder não sei a quem que está não sei onde que não será bem assim porque na vida está tudo ligadinho: há o amor, há o prazer e há o prazer do e no amor. a ambiguidade, quando passa dos limites, quando só se põe como o sol a encavalitar o mar para depois se desfazer, é intranquila e faz crescer dúvidas, dúvidas como ervas daninhas, no jardim das certezas que nunca são certezas certinhas. as certezas são bálsamos que apenas sentimos, nascem de dentro, podem ser bálsamos ou venenos perante o que só temos. obviamente. então é isso, meti-me a pensar nisso depois de me enervar lá onde o sol só se põe e não é para mim, lá será para os cabrões, homessa, para mim tem de ser a luz do meio dia mesmo quando amanhece e escurece, eu quero o prazer do e no amor apaixonadamente tranquilo. está dito e não arredo pé. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

é muito simples

sou literária a pensar e a contar sem, no entanto, transformar. o que é o que é, não faço literatura. é muito simples, sou só eu.

terça-feira, 21 de junho de 2022

realmente como se fosse real

 bastou perceber que teria de se esforçar muito para a meter num lar imediatamente, nem tempo tive de me despedir e de lhe deixar uma brisa no rosto, sim, porque marcada de mim já ela estará para sempre. como as coisas são rápidas e simples quando são um peso pesado para alguns, penso, enquanto acelero na estrada para chegar onde já não tenho vontade de chegar. a noite foi dura: houve foguetes, aquele artifício nojento que os cães e que eu odeio, a acordarem-me com susto, o sangue que não pára de jorrar e a saudade do que nunca mexi. anda, dorme, adormece, amanhã é outro dia novo a estrear, viro para um lado, viro para outro, levanto-me, passo a pomada uma e outra vez, parece a assadura dos bebés que não passa e arde muito, desconforto, persianas que fecham mas não se apagam, cérebro a mil, carros que passam sem pantufinhas de lã, deve estar a chover porque os pneus caem nas poças, senão não ouvia o grosso chapinhar, gatos vadios, ou com o cio, parecem crianças a chorar, essa é uma razão porque não lhes aprecio a companhia, depois uma campainha a tocar ininterruptamente, mas o que é isto, o mundo inteiro a azucrinar-me o sono, o riso e o amor, vou fazer queixa ao kundera depois de contar tudo ao do meu derriço, conchinha não há, calam-se os cabrões dos gatos finalmente, ou as poças secaram ou os carros deixaram de passar, o meu sangue continua a correr e talvez a pimenta no rabo seja agora açúcar. adormeci, sono que se esticou como um elástico, se calhar foi o que está a aguardar a saia, !ah!, e acordei realmente em beijo de derriço como se fosse real, abraço a almofada e deixo-me escorregar até à banheira para me levantar. bom dia, Olinda, chegou ao seu destino: tem meia hora para entrar na realidade fantástica e travar a batalha de alljubasrotas do dia. até já.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

poesia

às vezes canso-me. às vezes penso: hoje não vou fazer do dia poesia e fico a observar e canso-me também. porque se eu não fizer do dia poesia, alguma coisa tem de ser poesia, o dia não é dia. fica uma página em branco, sem nada a registar. porque o mundo está cheio de gente descontente que nada tem para acrescentar, faz-me confusão, gente que vive por fora. aquela também estava a querer esticar a corda comigo, não sei bem por que razão as pessoas pensam que podem esticar a corda, deveriam pensar ao contrário: então se é paciente e tolerante e perseverante, mais uma razão para considerar e respeitar em triplo. mas não, fazem ao contrário, ela estava a querer que hoje fosse eu a lá ir cuidar da tia antes de ir trabalhar. então esticou a corda. tenho reparado que usa as mesmas calças desde segunda-feira e o tempo que lá tem estado, deve andar com medo que alguém faça queixa dela por não cuidar da velhinha doente, em vez de limpar e arejar a casa, de lavar e aprumar a tia, fica no telemóvel só a fazer corpo presente. depois gaba-se de ter muito trabalho porque é professora e que não tem tempo. ora o tempo também se faz tanto quanto se desfaz, haja vontade e da boa. vai daí, ignorei toda a sua conversa, disse-lhe explicitamente que não, e saí de lá a ouvi-la dizer que vem às sete da manhã antes de ir para a escola. excelente. é porque ando há mais de seis anos a injectar poesia na casa da sua tia, pensei, quantas vezes lhe liguei aflita e não atendeu. sms: estou num concerto e amanhã ligo. cabra. estou rodeada de cabras e de cabras badalhocas que andam com as mesmas calças mais de uma semana seguida, quer dizer, o que é isto, aquelas calças devem cheirar a bacalhau além de serem altamente reveladoras da monotonia dela. como é que alguém que é mulher consegue pegar nas mesmas calças todos os dias sem se cansar? olha, menina, da mesma forma que todos os dias durante estes anos todos olhava para a tia ao longe sem se mexer. tem estômago de glaciar, só pode. tenho de me controlar. porque se hoje aparece outra vez com as mesmas calças será o cúmulo da repetição que gera a narrativa de desleixo e de desapego, tenho de agarrar na minha língua e segurá-la bem como se faz com o peixe que escorrega enquanto se está a amanhar. que remédio. e o melhor remédio é, pois, fazer uma poesia: transformei um vestido antigo em uma saia, falta acrescentar um forro para inibir a transparência e fazer a cintura elástica para ficar um regalo. depois a saia, feita de poesia, em poesia se tornará sempre que a passear no dia, em um dia qualquer.

domingo, 19 de junho de 2022

sangue, lágrimas e suor

ia começar a ver o filme, feliz pelo reencontro, tão feliz, não era muito extenso e poderia acertar com os afazeres, quando como se a tivesse ouvido sem ouvir, porque seria impossível, fica do outro lado da rua, quem me dera ter ouvidos de cadela mas não tenho ou se tenho desconheço, talvez tenha, afinal, como estava a dizer, levanto-me e visto uma camisola de alças e pego em um vestido fresco de andar em casa para meter em cima da camisola, como se a camisola fosse - e é - um substituto do soutien sem ser, por ser, por ser porque em nada lhe cumpre com as mesmas funções, a camisola de alças apenas mete o soutien no sítio dele que é na gaveta, se eu pudesse todos os dias o soutien vivia na gaveta mas não pode ser, uma das funções do pedaço de tecido é evitar que se notem saliências. adiante. 

pego no telemóvel e na chave, volto já, digo, vou ali à Dona N.. ainda estou a meter a chave na porta quando começo a ouvir os seus gritos como se estivesse a rezar, jesus, meu jesus, jesus meu jesus, vejo-a na cama sem se conseguir mexer. sou eu, Dona N., digo enquanto já me sinto em tremor de carne, nervos em preguinhas de susto, abraço-a e percebo que não consegue levantar-se sozinha, chama-me anjo da guarda e demora uns minutos para me associar ao nome. levo-a até à casa de banho que fica no extremo da casa, barafusto, se tem algum jeito dividirem a casa assim, e também penso mas não digo na miséria que é a sobrinha ainda não ter chegado aonde não deveria de ter saído, deveria dormir lá enquanto não há outra maneira. demora uma eternidade para conseguir fazer descer a urina aguentada tantas horas e ainda tremo mais. depois vou abrir a janela e ponho a água ao lume para lhe fazer o chá para a primeira refeição enquanto lhe separo as pastilhas. jesus, meus jesus, jesus, meu jesus, continuo a ouvir e a tremer-me toda. penso que a continuar nervosa assim com tantas coisas dos outros que vêm ter a mim não tardará o meu sangue descer outra vez e talvez outra no mesmo mês como se o meu sangue fosse, e é, a minha maior reacção juntamente com as lágrimas e o suor. naquela altura já estava encharcada em suor só de estar a arranjar uma forma de a levantar para a fazer chegar à cozinha e as lágrimas tive de as aguentar até bem mais tarde. entretanto chega a sobrinha para lhe dar o pequeno almoço eram quase onze da manhã. que tristeza, já estava, pois claro que já estava, eu ouvi-a sem a ter ouvido e tremi o que não deveria tremer e, sim, o sangue que deveria estar sossegadinho voltou a descer. já não bastava o monte de gente reles do pão, a dor de ouvidos, o dente, e o maldito antibiótico do tamanho de um ovo de codorniz que me fez rebentar o rabinho por durante oito dias o engolir. porque os nervos perante as injustiças rebentam-me toda.

sábado, 18 de junho de 2022

Olinda no país das maravilhas

assim que eu pude escolher como queria, rodeei-me de espelhos, quanto mais peculiares melhor, molduras em relevo de rosas, laços e lacinhos nos cantos, outros velhos com manchas do tempo, outros com tecido esponjoso que pintei de dourado. tenho um que pendurei brilhantes na madeira acabada de alterar, de preto o fiz pérola, e outro que é um sol. depois há um pequenino com bolinhas coladas em redor e aquele com talha dourada e colada que apanhei ao pé do lixo quando ía a passar: recuperei-o só para mim. e muitos mais. mas nunca tinha percebido bem de onde vinha esta paixão, a de ter um espelho sempre à mão e ao lado e por cima como se fosse o meu pé.

epifania, !ai!, que depois de apreciar as flores que me deu, tenho a mania de as cheirar como minhas, sai-me de rajada que se elas forem espelhos de nós nunca estamos sós. e é isso, querida Olinda, o segredo é estarmos rodeados de flores que nos enchem o coração.







sexta-feira, 17 de junho de 2022

o sofá do conforto dos outros

o livrinho escuro tinha chagado na quarta, fui buscá-lo aos CTT, e li-o ontem de manhã cedo em uma assentada. nada de novo, portanto, até me parece, pelo conceito, um pastiche da parte escura do livro do Rei - mas só da parte escura e não como um todo e muito menos pela parte que me reiluminou assim que o li: o brilho ultra-romântico.

como estava a dizer, li-o em uma assentada e penso nas cinco estrelas por tanto que já conheço: do particular para o universal só vai quem conta os tiros no escuro. ora eu divirto-me imenso com os escuros e os tiros dos outros, é verdade, por saber que é mesmo assim, palhaços com uma bola no nariz e uma cenoura no cu, cornos, desmesuradas irresponsabilidades, vícios, porcarias, enfim, erros justificáveis por conta de se ser humano porque ser humano é ser um erro feito de muitos erros. e depois a lengalenga literária de que é o escuro que nos faz vivos e aptos a desenvolvermos a nossa actividade vivencial, e tal, uma espécie de ficha de aptidão, que sem escuro não há vida e que andamos aqui mesmo só para nos fodermos uns aos outros e o resto é paisagem. 

então e onde é que eu fico no meio disto tudo, penso amiúde, olha fico a divertir-me com os erros da literatura sobre os erros da humanidade em geral e que não são, nunca foram e nunca serão, os meus em particular. porque eu não posso confessar o que não há, o que não me há porque não houve. e depois vem o choradinho do abandono e da punição porque há sempre alguém que no meio da podridão - a podridão que é normal nos podres porque ser podre é ser humano - dá de frosques. ora o meu escuro é pegar na faca ou na caçadeira e foder as ventas aos escuros que escurecem a vida dos outros; fodo-lhes as ventas até aos ossos e isso é-me irremediavelmente certinho.

mas o que me deixa triste no meio da palhaçada dos outros que me diverte na realidade da literatura é perceber claramente, na realidade fantástica, que estes são incapazes de perceber que é a claridade que me ilumina. e continuam, afincadamente, a escarafunchar o escuro deles próprios. é o sofá do conforto.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

talvez. talvez.

 e se o tempo, o tempo que se faz sol e chuva e vento e trovão, for meu súbdito? de repente, tudo é de repente, o calor abrasador derrete-se em vendaval e pingos grossos de se fazerem notar como quem diz, e diz, estou aqui, e depois o vento apressado assobia e espalha-se como que diz, e diz, não estou a assobiar para o lado e depois carrega-se em si para chegar a ela, chuva, e a chuva chove-se, passa de trote a galope misturada com o trovão da ordem como quem solta uma gargalhada possante como quem diz, e diz, quem manda aqui no reino do tempo sou eu, e fá-lo de forma estridente como quem pega no tridente depois de ouvir o eco és, és. então a rainha do tempo sabe que com o calor abrasador algo está para estourar, é ela que não tarda vai morrer, tal e qual como quando foi com o calor da filha, também morreu depois de eu tanto a socorrer, valeu a pena socorrê-la, morreu com mais doçura, talvez, talvez tenha morrido arrependida de nunca ter socorrido ninguém, e agora morre a mãe já a roçar-se nos noventa e em mim, eu que pareço já ter cem, choro-a com o vento que assobia e depois sinto os pingos grossos que me avisam da frescura que há-de vir para me continuar a acalmar também lá onde teimam em me humilhar, nada mais a fazer, o meu açucar não se pode enervar e então o vendaval começa a tocar, concerto que é para mim com o vocalista trovão a abanar-me toda: minha rainha ou ficas ou sais, pensa bem, porque se sais talvez possas perder mais, depois terás a punição, pensa no teu pai e no incansável sermão, não queiras depender dele, não, e então o trovão solta a gargalhada estridente para cessar o meu cansaço pela exaustão, cenário de guerra no ar, tantos a morrrer e outros tantos por matar, tudo entra em mim. pára tudo, ordeno, quero gotinhas ping ping,ping, brisa em pé de dança, sono bom. amanhã é outro dia e outros mais tranquilos se seguirão. talvez. talvez.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

conicha triste e treinador azeiteiro

 todas as madrugadas tem sido isto, é assim, páram o carro mesmo aqui à porta, ficam na conversa com o motor ligado e a música ácida a dar nas alturas e depois ele saca um pião como se o pião fosse, e é, a sua virilidade em exibição. são dois cabrões, portanto. ela, em vez de cuidar da filha que teve com outro azeiteiro não vai muito tempo, vai, noite dentro, treinar a conicha e ele, que não é daqui, é o treinador acelera de conichas tristes. mas o mais engraçado é que os vizinhos é que se fodem, pois claro, não uma vizinha como eu que acorda cedo, os vizinhos que precisam de descansar com sossego e para quem a madrugada ainda é meio do sono. um dia destes armo-lhes a tenda. ando aqui a pensar ao sol em uma ratoeira de descasca pessegueiro para os lixar. badalhocos.

terça-feira, 14 de junho de 2022

quebras e quedas e jindungo a correr para o abraço

 uma quebra de energia pode ser uma queda. faço tudo a correr para chegar o mais cedo possível depois do almoço, muita vontade de receber o que tem para me dar, chego a pingar, o calor quase me mata: odeio-o, odeio o calor, e tudo se desfaz: não há luz, não há ar condicionado e depois não há servidor, e depois de algumas horas dizem-me que posso ir embora a faltar meia hora do fim, do fim que é sempre o início do dia seguinte, o fim de ontem é o começo de hoje. acho estranho não me abrir a porta, apesar de ter a chave, mas não forço porque recuo e vejo as persianas fechadas. não, não vai ser hoje que o que todos os dias me diz se vai dar, não vou encontrá-la morta em uma poça de sangue logo na entrada. desvio o pensamento e faço tudo com calma e com tempo, o que uma simples meia hora a mais me faz, tão bom, que bem que sabe, consigo recolher-me mais cedo para me consolar. entretanto ligo e a sobrinha dá-me a notícia de que teve outra queda, uma queda por cima de outras quedas e por debaixo de tantas outras que nunca deu mas só desejou dar. entristeço e penso em um plano para amanhã, hoje, conseguir animá-la à distância de um telefonema e, no fim do dia, orientar-lhe a nova medicação que ainda desconheço. se ao menos me deixasse, permitindo-se, dar-lhe música. não se permite e eu não ando aqui para convencer os outros do que quer que seja. não quer, não quer.

volto-me para mim e para o meu final de dia feliz já a pensar no amanhecer que virá, certamente. porque uma quebra de energia não pode ser uma queda, não pode ser porque eu não deixo e não quero que seja. eu estou no meu comando. e rio-me só de ler de raspão a notícia que pisca na lateral direita mais ou menos assim: trocar o lixo nos contentores por mensagens picantes. ora sem fazer a mais pálida ideia do que se trata, ainda sem fazer a mais pálida ideia, vejo logo um punhado de jindungos frescos e arrebitados a fazerem uma serenata às cascas de cebola e às espinhas de um robalo absolutamente despido. e rio-me antes de lhe ir dizer que estou viva por abraçá-lo.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

 a guerra provoca-me diarreia, seja ela qual for, diarreia e pesadelos e 

como eu queria ter uma paz de bolso branquinha

para amiúde sacar dela

e atingi-los bem lá no peito

por conta de ser no fundo do peito

que nasce a nascente

da água

domingo, 12 de junho de 2022

escrevo como se ninguém me lesse

 isso, escrevo como se ninguém me lesse. esta espécie de ritual que antes era no papel, o original, de repente passou para aqui - uma janela que se abre para a outra janela, parece-me interessante que o de repente, o instante, fique registado assim, !ai! de mim, como se a baínha a descoser, tão linda, ficam as linhinhas soltas e marcadas até que nunca acabem as alvoradas. e penso no que é ser sacrificial neste jeitinho de ser, trrimtrrim, já não vais fazer a sesta, irmã preciso de ti, tragédia descomunal e o menino viu e ouviu e está mal.

arrependo-me assim que cheguei. pensei em alguma desgraça, um acudam que há inundação, terramoto ou coisa e tal mas afinal não. afinal foi mais uma cena conjugal, enfim, e deixei-me de me descansar, pobre de mim, penso já no fim, pelo menos fico mais descansada porque fui e já não estou tão pesada - ou se calhar agora é que fiquei com mais uma bagagem de preocupação, carregar as dores do mundo não é fácil, uma peregrina corcunda com a perninha a andar e a dar é uma rica imagem, não está mal.

escrevo como se ninguém me lesse, é verdade. assim como é verdade que escrevo por querer tanto que me entenda já que o carrego, noite e dia, no meu peito e na minha cabecinha de cristal, posso dizer estas coisas aqui e assim porque não há como ficar sem jeito. varre-se-me, sempre se me varreu, a timidez de lhe contar tudo; de contar, meu amor.



hoje não me apetece título

e passam-me mil e uma coisas pela cabeça enquanto preparo os filetes, digo filetes como poderia dizer a carne assada ou a feijoada ou  a salada russa, como estava a dizer, fiz dos filetes a minha eleição, aquele carinho com que os escolho e parto aos rectângulos e depois meto-lhes sal e muito limão, ficam a descansar, já se sabe, sabem que servem para me agradar, e depois seco-os, ficam enxutos, e faço-os rolar na farinha milha amarelinha, parece que chegaram à areia fina e dourada, para logo a seguir conhecerem o sol dos ovos batidos, enrolam-se ali nos dois, bem à minha frente, enquanto o óleo fica quente e vão a mergulhar, vira para cá, vira para lá, dançam na espuma do ovo que se solta, talvez sejam as borbulhas de satisfação, até com jeitinho eu os apanhar e metê-los na bonita travessa, à espreita, decorados com a verde salsinha e em rodelas o limão e a laranja, contrastes que casam bem.

como estava a dizer, enquanto os sabores se enrolam, passa-me mil e uma coisas pela cabeça: penso no que no dia de ontem me ficou e no que hoje me traz e penso também no que não penso quando penso no que estará por vir. porque o futuro não existe e o passado só já existiu, putinha que o pariu, pimenta na língua para si, refila-me o filete com esgar de bacalhau com todos. o que me importa pensar é no presente, o hoje com nome de prenda por motivo sábio e professor: o presente é o dia a acordar com o filete fresquinho a que tenho de dar, com tudo o que me faz ser, cor e sabor.

sábado, 11 de junho de 2022

clarão

 


é de veludo a perfeição

como o sonho

vida na mão

da planta no pé

porcelana minha

clarão

sexta-feira, 10 de junho de 2022

e se Camões pudesse mostrar

 aprendi há muito tempo a não me deixar vencer, a prevalecer em mim independentemente dos malucos que vou encontrando, o mundo é um palco de gente doida, e que pensarão que me podem derrubar. às vezes é duro e difícil: como enfrentar sozinha tantos monstros a quererem cortar-me a cabeça e furar-me o coração? então eu faço como sempre fiz, desligo-me da confusão, bebo-me toda, sei o que mereço: mereço que todas as noites a fadinhas dancem à minha volta e façam um anel de flores para afastar os horrores; mereço o de todos, os melhores e maiores amores, o amorzão; mereço piqueniques e música em grama fresca; mereço beijos e besos e até mereço que o Camões grite por mim em cuecas cheiinho de saudades e que diga ao mundo, coragem sem perder a vista, que se pudesse mostrar trazia a confirmação enroladinha em um pregaminho onde se assoava, de quando em vez, por conta de se emocionar, como estava a dizer, trazia a confirmação de que  eu sou a rainha do reino dos mares e das montanhas e das trevas e do vulcão. 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

o que fala mais alto

 de repente, de repente porque ando sempre a leste das cusquices que envolvem os patrões, fiquei a saber que tinha sido tudo vendido e que agora eramos só nós e o filho que não tardou a aparecer e a fazer-se notar. empreendedor, inteligência afiada, sem papas na língua nem ovos por debaixo dos braços, traçou a linha onde me lambuzei: agora sim, agora vai-se acabar a invasão e os boicotes. sobresforço, mais três meses de sobresforço e a linha começou a declinar, a ficar enrugada e esbatida, chega a notícia, chega a notícia porque a percebi, apreciei-a no ar como faço com as moscas silenciosas que, não se ouvindo, pressinto, fico confusa, fico confusa quando não decifro imediatamente o que não me é explicitamente mostrado, vejo o que está para vir sem ter a certeza absoluta do que está para vir sabendo que está para vir. e é nesse espaço de tempo, enquanto o decifrar se faz sem eu procurar fazê-lo, que o meu corpo vai falando. escuto-o e depois, então, os sinos tocam, chega um carteiro em forma de confirmação, um carteiro que pode ser uma palavra ou um gesto ou uma reacção inesperadamente esperada.

e o que fala mais alto é, afinal, o costume: deixar que ela mande, não se importar, sabendo que estou lá para cuidar e alertar e fazer o dinheiro entrar. estou cansada de não ser cuidada, só de cuidar. até quando deixarei que me usem a trabalhar, e se fizer as malas consigo aguentar o possível deserto que já conheço e que nunca esqueço?

quarta-feira, 8 de junho de 2022

valha-me o riso

 percebi tudinho diferente. onde seria para tentar fazer igual, percebi um desafio de encontrar diferente. será isto que leva os outros a considerarem-me arrogante? estava longe de pensar fazer algo tão difícil, de superar uma coisa que certamente envolve muito tempo e dedicação, e só vi uma espécie de desafio adaptado ao meu cérebro: encontra aqui mais seis como este diferentes destes. então encontrei mais oito mal me pus a observar, a minha alegria de ver bichos e homens e monstros e até uma flor. depois chega a notícia, não era nada disso, tinhas de tentar fazer igual, tentar pensar na lógica para descobrir o que já lá está, menina.

valha-me o riso, o meu querido auto-riso, que me salva, o meu prémio de consolação, vá não fiques triste, viste o que não era para ver e divertiste-te, ficaste feliz e também percebeste que afinal tens sempre de inventar.

terça-feira, 7 de junho de 2022

trenguinha dos canaviais

 às vezes fico muito confusa. teria de ter tempo para ler todos os livros de uma acentada para cruzar tudo com os detalhes das vozes que inventa e da voz-mor que o sustenta. não tenho esse tempo. mas tenho a vontade de não desistir. essa vontade nasceu um dia e continua a nascer, é um mistério, talvez o desejo que também é o amor seja um mistério; tudo recomeçou assim anos depois - o braço de ferro entre ele que se fez desejo como litoral e eu, que nunca deixei o desejo como o interior para chegar, finalmente, ao litoral. quando vi o litoral e os juntei, qual maravilha por inventar, tive a certeza de que tudo estava no certo lugar: o tal lugar que eu sempre vi só porque senti. eu sinto coisas, serão as fadinhas que me vigiam e alentam.

não posso dizer que correu mal. mas de tudo o que já vi, e vou vendo, onde vai buscar tantos corpos digitais, serão nados-mortos?, pergunto-me eu que sou a trenguinha dos canaviais. 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

simplesmente o melhor, breve apontamento

 é o melhor contador de histórias do universo, assim pude perceber quando o li e percebi muito mais e melhor quando o reconheci, quando me mostrou que a história vinha já de longe, do sítio onde só o coração vê ainda que o canal seja a razão. nessa altura, lá longe, eu apenas sentia, pelo que lia, tratar-se de uma mente brilhante, genial, fora do convencional, que se escondia com pesar e apesar, só não sabia porquê, soube depois, quando finalmente me convidou a entrar, a lê-lo de uma assentada sem nunca ter ficado molhada - não pelo ódio - mas sim pela narrativa de amor, aquela brisa incondicional rara que seria o oposto do recebido sem nunca o ter vivido. nessa altura nem me passava pela cabeça ser o mesmo do outono do ano prometido que nunca aconteceu, aquele com quem sempre sonhei e de quem desliguei para o meu bem, depois de conseguir, finalmente, arranjar quem me desse a cana para eu pescar sem, no entanto, poder relaxar. lia tudo, todos os dias, com devoção como se transparente fosse porque transparente me sentia por ser transparente a forma como mostrou que me via e que não me queria.

seguiram-se tempos de problemas e aflições,

cansaços e torturas no emprego da cana para pescar o pão,

e na família onde eu era sempre a mãe e a avó, a escrava e o condão

nem tempo nem vontade de aqui usar a mão. 

como se desistisse de mim, de me contar nestas costas direitinhas que nunca hão-de mudar e que ninguém quer acreditar como são. talvez sejam raras, sim, e custa, por onde passam, serem testadas até à exaustão. nada temo, tudo comprendo.

mas como estava e continuarei a dizer é o melhor contador de histórias, mesmo quando são as histórias dos outros, do universo. 

obrigada, universo, por me dares tréguas e água fresca.


domingo, 5 de junho de 2022

pescadinha de rabo no somítico

 levei-lhe uma fatia de bolo de farinha integral, sem açúcar e sem sal, muito sabor a limão, acabadinho de fazer. talvez quisesse, como sempre quero, fazer-lhe a alegria acontecer por dentro daquelas paredes por caiar, esqueleto frágil que vai cedendo à negritude do pensar, pensar negro talvez seja como um dom. ou então será o início da criação de um ódio de estimação, como nos diz o Per, que terá nascido lá no início enquanto era tenrinha. se calhar ela era tenrinha quando começou a absorver o pecado, ou castigo, será a mesma coisa, do somítico.

estou para aqui nesta solidão, cheia de dores na perna, o reumatismo não me larga, aqui estou abandonada, abandonada não, pelo menos não por mim. já viu como tenho a bochecha inchada por conta do ouvido, estou aqui e trago-lhe bolinho bom para se esquecer da dor. sabe bem que se se distraír não se lembra que dói, essa dor acaba por ser uma invenção tal e qual como a sua solidão. não diga isso que estou nesta solidão, abandonada, não está não, vai ver que no centro de dia tudo será diferente e vou finalmente ter o seu olhar contente cada vez que entrar pela porta. mas eu não quero ir, quero ficar na minha casa e assim não pago um dinheirão.

pois, pescadinha de rabo no somítico, quer ficar na solidão. e ter-me sempre à mão.

sábado, 4 de junho de 2022

quando eu morrer um dia

ou dois ou três

ou todos os dias

vejo-me sempre a viver

deixo-te o meu botão

encarnado e rosado

palpitante e louco

a descompasso de tu

tu tu tu tu tutututututututut tu tu

botão que entra e sai da casinha

delicadamente alinhavada

linha em ponto de ziguezague

branquinha e fininha

como só a casinha do botão pode ser

para o meu botão caber

casinha larga, largueza de ser

porque no meu botão saltitante

que o universo me deu

qual mãe qual pai

cabe lá ele todinho

é o botão de tu mais eu

 

deixa ver se ainda me lembro, querido diário,

 de usar o blogue. inexplicavelmente depois de meter o pão a fazer e a máquina a lavar, depois de ter beijado as flores dele, as flores são de toda a gente mas são só de alguém, de outra forma seriam todas iguais, como estava a dizer, depois de as beijar uma e outra vez até me dizerem para parar, podes largar agora um pedacinho, menina, deixa-nos descansar dessa doçura picante por um instante, não leves a mal, está bem, refilo e ponho-me a andar, inexplicavelmente, como estava a dizer, lembro-me do meu diário de bordo que ficou paradinho entretanto, sei lá, deixou de me apetecer, talvez tenha sido o trabalho do cansaço que não o deixou prevalecer, deixei que quem não me bem quer tapasse o brilho de escrever para ti. 

querido diário,

penso em voltar para os teus braços grandes e quentes depois de tanto tempo longe de mim aqui, não fiques confuso ou fica se te apetecer, talvez a vida lá fora me tenha agarrado pelo cachaço, anda cá sua cadela, agora vais ter o que é bom para a tosse, vais experimentar viver como se nada fosse, vais amargar, vais conhecer gentes distantes de poesia e conversas de tretas e terás muito lixo para limpar, anda, larga disso de contar. e como um novelo de lã, de lá, deixei de parar por cá, ninho meu dos meus dias que me desafias. não te vejo zangar e sorrio por entre uma lágrima que verto e outra que se segura ao ver uma outra pular. vá, está tudo bem, eu estou aqui sempre para ti porque tu és e serás a minha prioridade, o meu amor. ouço e sossego, recebo o abraço e o beijo como só pode ser: com a ternura mais terna de um sim, si, s, 

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

voltar

e se a vida nos enviar um lembrete de que temos de voltar? voltar porque sim; voltar como quem dorme e sempre tem de acordar; voltar por sentir - por deixar de resistir.

voltar como o dia que nasce, sem saudade e sem ansiedade, sempre novo. de novo. voltar.

domingo, 11 de dezembro de 2016

virrer

feliz. feliz com a morte dela que aí vem não tarda. que seja já hoje, queria que fosse mesmo agora mas aguardo que uns sininhos toquem. descobrir a felicidade no meio da tristeza é maravilhoso - descobrir que há vida para além da morte. morre, minha querida, morre depressa em sopro de contramão que não mereces virrer.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

ando eu aqui, ai!
por entre as esponjinhas da chuva
a saber de não saber como quem sabe
por que raios e coriscos ser deste jeito
ver a vida como excesso de uva
é mesmo esforçar o dobro para ter a metade

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

ao obscurantismo

e se Camões sonhasse, um dia, com o obscurantismo da humanidade diria assim:

aos amalucados, a glória vã
ai! que pensamentos meus tristes
diz-me tu mar salgado do globo
que és rio doce e qu'existes
prefiro os olhos sós
e as palavras da garganta cortadas
mão, pés, fanados membros,
almas rasgadas
do que viver o que digo como vivido
lá longe na bengala do tempo,
tantae molis erat,
sequer quero pensar
sai má fortuna!, escafede-te!
mata-me a ideia de Trumpar



segunda-feira, 31 de outubro de 2016

e se me perguntam se quero doçura ou travessura respondo, como só pode ser, travoçura.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Outom

verdes, tantos
, amarelos
rosas, vermelhos, corados
, enfim, marrom.
ai! que engano! de Outono!
quando tinha mesmo de ser Outom

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

os peidos fazem parte da vida

é, por isso, inconcebível viver sem eles. bem visto, os peidos estão para o profano como a fé está para o sagrado: energia invisível em movimento, alívio amiúde, esperança perseverante - e interrupta - em um caminhar melhor.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

vazio

anda sempre tudo ao contrário, pensamento risonho, tudo não e ainda bem, que tudo é o espaço mais vazio que conheço.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

lágrimitas

já não vejo a sua senhora há muito tempo - está melhor? oh! menina! ela nunca mais saiu de casa, anda corcunda, tenho a certeza de que é um tique. mas ela não está doente da coluna? só se for doente para mim, não vejo pingo de amizade, só existe para a besta do filho. às seis da manhã lá está ela a lavar a roupa dele no tanque - e eu, se quero roupa fresca tenho de ser eu a tratar dela. já tenho oitenta anos. e ela não? sim, até tem mais mas se faz tudo ao filho porque não me faz a mim também? a mim, que gastei mais de metade da minha vida com ela, uma mulher sem instrução, eu que tinha tantas fidalgas atrás de mim! menina, montaram-me uma cilada. uma cilada? (espera mais um pouco, Valquíria, já vamos continuar o passeio) sim, menina, sei lá eu se o meu filho é meu ou filho do padre. eram os anos sessenta e eu dei umas voltas com ela. depois apareceu grávida e lá tive de casar. fiz-lhe um favor estes anos todos, ela nunca teve classe para mim. e agora sou eu e a cadelita, tenho de fazer tudo em casa e ela só vive para o marmanjão do filho, o filho que se calhar nem meu é - aquilo é uma besta, menina. ouça, e a senhora não estará, com essas atitudes que me diz que tem, com indícios de demência? mas isso queria eu saber, menina! queria levá-la ao magalhães lemos e interná-la. e depois a besta, que pode ser meu filho ou do padre, que ficasse lá também. tem de ter calma, calma e paciência porque já tem oitenta e a esta altura nem sequer lhe adianta pensar nisso. mas eu não páro de pensar nisso, menina! e se a besta for mesmo filho do padre? precisamente: agora nunca vai saber e já viveu muito mais de metade da sua vida. agora tem de descansar e ficar tranquilo.

as lágrimas que lhe escorriam, teimosas e espevitadas, não eram pela suspeita de não ser pai da besta. as lágrimitas, uma palavra nova meia hispano-dramática que me saiu mesmo agora, para nada de novo, eram, são, o suor da solidão.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

novidade estranha. entranhará?

prometi hoje aos meus colegas de trabalho uma crónica sobre homens e mulheres, vulga guerra dos sexos. decido, entretanto, acrescentar a bonança dos sexos ao mote. mas isso fica para depois porque, em boa verdade, apetece-me discorrer de forma selvagem sobre as guerras do Homem. nem sei bem se faça juízos de valor - não sobre o valor do Bob Dylan - sobre o prémio, o melhor prémio, da literatura. não é de descurar a prosa poética que se trata. trata-se, isso sim, de percebê-la ao milímetro do som. por que raios e coriscos um génio da música, música acrescida de letras - uma espécie de alquimia perfeita por dentro da irreverência, ingerência e (im)pertinência completamente imperfeita - é feito galo da literatura?

percebo. faço por isso. aceito. fico feliz, sim, de ver uma união verdadeiramente perfeita - a das letras com música - ser aclamada. mas precisava de ser assim, a kind of mestre literário, o homem que revolucionou a música lá atrás bem no início da sua já longa vida? o homem não nasceu para escrever, o homem nasceu para criar música, aquela linguagem universal cujas letras apenas acrescentam pitada de magia.

do outro lado lá está ela: a alma das letras que se fazem palavras, a coisa de aquela música sem aquela letra não ser mesmo a mesma coisa. serão todos suspeitos, claro, os que se desgraçam nas letras. voltando à vaca fria: e por que não ofertar um prémio literário a um homem que transpira música quando toda a música tem em si mesma, sem encerrar, uma narrativa? não me parece bem nem mal. antes parece (me), e é, uma novidade estranha que, pelo menos, nos está a dar música.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Vivalder um ano e pico depois

de repente a gana de voltar como se voltar fosse, é é, muito mais do que um verbo, dar a volta e recomeçar. e se o eterno retorno não for mais do que um sereno voltar? a coisa simplificada resume-se ao passar pelas quatro estações, enfrentar a chuva fresca e o sol abrasador e o vento cortante e - que manta de vinil natural! - o nevoeiro. e depois, por dentro da simplicidade, há o complexo mundo das alegrias e das desgraças e das esperanças e das derradeiras dores. é a vida, ouço amiúde, são vidas.

e decide-se voltar a pisar, com a simples naturalidade de Vivaldi, a complexidade do mundo das quatro estações.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

a urina, um carinho

dizem os mais antigos cá na rua que andava por cá há mais de vinte anos. não me lembro dele antes de daqui sair para viver e conheci-o há cerca de três anos e meio quando para aqui regressei. no olhar tinha doce, nos passos a sabedoria de um velho - de um cão velho. seguia-nos para todo o lado mesmo com o tesão já afrouxado e limitava-se a lamber a urina dela. um carinho. e ela, desafiando-o, não o deixava tocar-lhe mas sentia-lhe a falta sempre que dando meia volta ele voltava para trás e não finalizava o passeio connosco. 

na segunda feira adivinhei-lhe a morte quando também ele sabia que ia morrer. vi a puta da morte nos seus olhos e vi-a também no seu desapego pelos humanos e no passear das lembranças enquanto vagueava no campo feliz onde cresceu, virou moço e depois homem e depois velho. disse ao meu pai: o cão está a morrer, tenho a certeza. não acreditou. ontem morreu ainda a manhã ia a meio e já sinto a sua falta. era um silêncio calmo e meigo apesar de distante. era o silêncio de um cão velho. porque os velhos que não são cães não são silêncio bom.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

tanta vez eu penso em ti, Frida, ingenuidade e folclore em bicos de surrealismo que era, afinal, a tua vida real.